quinta-feira, 17 de maio de 2012
SOBRE LIVROS,CORPOS E ALMAS-TEXTO DE FLAVIO MARCUS DA SILVA(FOTO)
Sexta-feira, na academia, quando eu estava na bicicleta suando a cântaros e lendo Big Sur,
de Jack Kerouac, um aluno meu da faculdade se aproximou de mim para conversar.
Interrompi a leitura e abaixei o livro até próximo ao banco da bicicleta, marcando a página
com o dedo indicador. Terminada a conversa, ao recomeçar a leitura, percebi que o suor
que escorria pelo meu braço havia ensopado a página do livro que eu tinha marcado e se
acumulado numa das bordas, molhando também outras páginas. O livro é uma edição de
bolso da L&PM, muito boa de ler. [...] Trago-o agora pra junto do computador e verifico o
resultado desse meu descuido, depois de seco. Folheio o livro várias vezes, sentindo sua
textura, e observo as páginas tortas, com alguns calombos nas partes atingidas, mas sem
nenhum borrão. Abro o livro na página onde está o marcador e leio ao acaso: “E com todas
as escuridões róseas enevoadas de tons variados e sombras tranqüilas para expressar a
efemeridade real da noite”. Vou lá no início e leio: “A infância da simplicidade de apenas
ser feliz num bosque, sem se dobrar às idéias de ninguém sobre o que fazer, o que deve ser
feito”. Fecho o livro e admiro sua capa: um carro seguindo por uma estrada deserta, e logo
acima do título a frase de Allen Ginsberg: “Cada livro de Jack Kerouac é uma peça única,
um diamante telepático”. Folheio-o novamente, várias vezes, acaricio a lombada com o
dedo indicador da mão esquerda, viro-o de um lado para o outro e deixo-o sobre uma
cadeira, bem ao lado de uma taça de vinho: um tinto português do Vale do Douro que eu
abri ontem à noite e que, agora, neste início de tarde, eu continuo a beber, pensando: “As
uvas daquele vale tiveram que dar sua alma para que esta maravilha pudesse ser produzida,
e o mesmo eu digo do Kerouac, que pôs toda sua alma indomável neste livro
extraordinário”. Olho para o livro e para o vinho e me emociono, mais ou menos como me
emocionei quando segurei pela primeira vez uma edição antiga de O Caso Morel, de
Rubem Fonseca, e senti suas páginas amarelecidas pelo tempo, pressentindo o prazer da
leitura que em breve eu faria; ou quando eu me encontrava nas páginas finais de Trem
noturno para Lisboa, de Pascal Mercier, e não queria terminar e segurava o livro junto ao
peito numa espécie de abraço de despedida; ou quando cheguei à livraria Ouvidor em Belo
Horizonte e tirei meu livro da estante, li meu nome na capa e folheei-o, pensando: “É meu,
fui eu que escrevi”.
São esses tipos de experiências sensoriais com os livros que muita gente vai perder se
leitores eletrônicos de livros eletrônicos se popularizarem no mundo. Para mim, o livro Big
Sur, de Jack Kerouac, possui uma alma imortal que cabe em vários corpos – grandes,
pequenos, com capas duras ou não, com ilustrações ou não –, mas não consigo me imaginar
lendo Big Sur num corpo e depois usar esse mesmo corpo (uma máquina) para ler Crime e
Castigo, de Dostoievski. Pra mim, a alma de Big Sur tem que fazer conjunto com o seu
corpo e permanecer nele (só nele) como uma unidade, mesmo que essa alma esteja, ao
mesmo tempo, em vários outros corpos (várias edições, em várias línguas). No caso dos
livros, usar o mesmo corpo para receber centenas e milhares de almas diferentes pode ser
ecologicamente correto, mas não faz bem para o meu espírito de leitor [...]. Volto agora da
minha estante trazendo uma bela edição francesa de Crime e Castigo e folheio-a várias
vezes. Sinto novamente a alma do livro naquele corpo já bastante manuseado por ávidas
mãos de leitor apaixonado. Abro o livro e passo suas páginas pelo meu rosto e pelos meus
lábios secos; sinto o cheiro das folhas, sua textura fina, bem diferente da textura da edição
brasileira de Big Sur. Vou à página 577 e leio a última frase, seca, dura, fria: “On pourrait y
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trouver la matière d’un nouveau récit, mais le nôtre est terminé”. Depois de tudo que eu
sofri e chorei e amei e odiei, aquilo: “...mas o nosso relato terminou”. Não preciso digitar
nada ou clicar em lugar nenhum para reler essa frase, só puxar o livro da estante e abrir no
lugar certo.
Como vai ser? Será que eu não vou mais poder passar horas numa livraria tocando e
folheando os livros? Será que vai ser tudo pela internet? Não dá pra acreditar. Todo aquele
ritual mágico de escolher um livro substituído por “Digite sua senha. Escolha o título.
Digite o número do seu cartão. Transação efetuada”. Que coisa horrível! E depois?
Terminada a leitura, naquele mesmo corpo penetra uma outra alma, bem diferente da
anterior (Que esquisito!); e eu não posso folhear, sentir texturas, cheiros, fazer carícias,
porque aquele corpo não tem folhas e suas texturas e cheiros são únicos, sempre os
mesmos, e nunca estarão em comunhão com a alma daquele livro. Nunca.
Livros são corpos e almas em comunhão, uma união mágica entre sentimentos, lembranças,
sonhos, texturas, cheiros, letras, capas e imagens diferentes. A meu ver, o leitor eletrônico,
ao padronizar o corpo, vai tirar o encanto e a magia dessa união.
Tudo isso é ainda muito nebuloso pra mim. Mas pelo menos por enquanto eu não consigo
perceber o lado positivo deste enorme avanço tecnológico e ecologicamente correto para a
Leitura no Brasil.
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QUEM É MARCUS FLÁVIO DA SILVA
Nascido em Pará de Minas- MG em 1975. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e doutorado pela Universidade federal de Minas Gerais (2002) com estágio (Doutorado- sanduíche/CAPES) na Universidade de Lisboa- Portugal (2002). Atualmente é Vice- diretor da Faculdade de Pará de Minas- FAPAM-(MG) onde já exerceu os cargos de Coordenador do Curso de História, coordenador do NUPE- Núcleo de Pesquisa, e foi professor nos cursos de História e Administração. Atualmente leciona nos cursos de Direito e Pedagogia. É autor do livro SUBSISTENCIA E PODER: a política do abastecimento alimentar nas Minas Setecentistas (Editora UFMG -2008) e de artigos publicados em periódicos e livros de História. Um de seus trabalhos foi publicado no livro HISTÓRIA DE MINAS GERAIS- As Minas Setecentistas (Editora Autentica 2007) obra vencedora do PREMIO JABUTI
2008 na categoria Ciências Humanas. Atualmente exerce também a função de Pesquisador Institucional da Faculdade de Pará de Minas junto ao Ministério da Educação, sendo responsável pelo acompanhamento dos processos e renovação de reconhecimento dos cursos de graduação da IES. Em 2009 foi eleito para a Academia de Letras de Pará de Minas.
www.nwm.com.br/fms
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