quarta-feira, 9 de maio de 2012

PRIVADA DE OURO NAO FEDE MENOS-TEXTO DE FLAVIO MARCUS DA SILVA(FOTO)

32 - Privada de ouro não fede menos Em meados dos anos 80, meus avós e minha mãe tinham uma sapataria na Rua Benedito Valadares (a Sapataria Fabiano) onde eu às vezes ajudava as funcionárias no atendimento aos fregueses. Uma vez (lembro-me disso como se fosse ontem), uma freguesa entrou querendo trocar uma sandália, mas sem notinha, etiqueta ou embrulho que comprovasse a compra no estabelecimento, e ainda apresentando um produto que, sem sombra de dúvida, havia sido usado por um bom tempo. Quando foi informada de que a troca não poderia ser efetuada, a mulher (que devia ter uns 50 anos) disparou uma série de palavrões contra a moça que a atendia. Suas ofensas eram, em grande parte, escatológicas [ou seja, giravam em torno da noção de fezes]. Foi mais ou menos assim: “Quem você pensa que é ô vagabunda?” “O que é que você acha que tem aí dentro do seu bucho?” [acho que ela quis dizer intestino]. “Pétalas de rosa?” “Perfume?” “Pois fique sabendo que o seu bucho tá cheio de merda, de bosta fedida, igual ao bucho de todo mundo!” “Você acha que a sua bosta é menos fedida que a bosta dos outros?” (...) E a coisa prosseguiu nesse nível. Mas o que os nossos intestinos e seu conteúdo têm a ver com a indignação da mulher na cena descrita acima? Não preciso ir aos grandes historiadores da cultura para afirmar que as fezes (assim como a morte) são facilmente associadas na cultura popular a uma ideia de igualdade, e que jogar na cara de quem se julga superior que as suas fezes não fedem menos que as fezes dos outros alivia o peso da desigualdade gerada pelos sistemas econômicos do passado e do presente. Todo mundo caga. O presidente dos Estados Unidos caga. A rainha da Inglaterra caga. O juiz que humilhou um inocente na frente da sua família caga. O médico que tratou um idoso como se ele fosse um bicho caga [cabe lembrar que nenhum animal merece o tratamento que alguns médicos dispensam a seus pacientes em Pará de Minas]. Todos os ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura, de Química e de Economia cagam. Todos que aparecem nas colunas sociais (ricos) ou nos noticiários policiais (pobres) cagam, etc. E não importa se eles comem caviar com champagne ou coxinha com guaraná. Com poucas diferenças, uma refeição de R$500,00, depois de passar pelos intestinos, fede tanto quanto um PF de R$8,00. É aí que está a igualdade. E quando alguém se sente humilhado ou injustiçado, a referência às fezes estabelece, pelo menos naquele momento, uma igualdade natural que, embora reduzida a quase nada pela desigualdade artificial do capitalismo, vem à tona por alguns instantes para dizer: “Você também não vale nada”. Como dizia Fernando Pessoa: “Nada fica de nada. Nada somos”. A mulher na sapataria sabia disso e perguntou: “Quem você pensa que é?” “Você acha que é melhor do que eu?”. Pascal Mercier, em seu belo livro Trem noturno para Lisboa, coloca na boca de um de seus personagens: “ A vaidade é uma forma ignorada de estupidez. É preciso esquecer a insignificância cósmica de todos os nossos atos para podermos ser vaidosos, e isso é uma forma flagrante de estupidez”. Ora, no mundo capitalista, então, a estupidez é algo natural. E em Pará de Minas acredito que ela é ainda mais marcante, fazendo ferver um substrato popular de escatologia igualitária, que vem à tona, de vez em quando, na forma de insultos repletos de referências aos nossos inocentes (e úteis) bolos fecais, direcionados contra pessoas consideradas vaidosas e orgulhosas. Talvez como um reflexo dessa cultura popular, a associação entre fezes e igualdade aparece também em textos que normalmente não são classificados como populares. Por exemplo, o poema Paixão de Cristo, de Adélia Prado: Apesar do vaso que é branco, de sua louça que é fina, lá estão no fundo, majestáticas, as que no plural se convocam: fezes. (...) Outro exemplo é o trecho a seguir, extraído do livro “A elegância do ouriço”, de Muriel Barbery: "Às terças e às quintas, Manuela, minha única amiga, toma chá comigo na minha casa. Manuela é uma mulher simples cuja elegância não foi despojada pelos vinte anos desperdiçados à cata de poeira na casa dos outros. (...) Convém saber que, quando vai à minha casa (...) Manuela já limpou com cotonetes as latrinas folheadas a ouro e que, apesar disso, são tão sujas e fedorentas como todas as privadas do mundo, pois, se existe algo que os ricos dividem a contragosto com os pobres, são os intestinos nauseabundos, que sempre acabam se livrando em algum lugar daquilo que os faz feder". Obs.: O computador insistiu para eu trocar o verbo cagar pelo verbo defecar, mas ignorei todas as suas súplicas. E chega de merda por hoje. QUEM É FLÁVIO MARCUS DA SILVA Nascido em Pará de Minas- MG em 1975. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e doutorado pela Universidade federal de Minas Gerais (2002) com estágio (Doutorado- sanduíche/CAPES) na Universidade de Lisboa- Portugal (2002). Atualmente é Vice- diretor da Faculdade de Pará de Minas- FAPAM-(MG) onde já exerceu os cargos de Coordenador do Curso de História, coordenador do NUPE- Núcleo de Pesquisa, e foi professor nos cursos de História e Administração. Atualmente leciona nos cursos de Direito e Pedagogia. É autor do livro SUBSISTENCIA E PODER: a política do abastecimento alimentar nas Minas Setecentistas (Editora UFMG -2008) e de artigos publicados em periódicos e livros de História. Um de seus trabalhos foi publicado no livro HISTÓRIA DE MINAS GERAIS- As Minas Setecentistas (Editora Autentica 2007) obra vencedora do PREMIO JABUTI 2008 na categoria Ciências Humanas. Atualmente exerce também a função de Pesquisador Institucional da Faculdade de Pará de Minas junto ao Ministério da Educação, sendo responsável pelo acompanhamento dos processos e renovação de reconhecimento dos cursos de graduação da IES. Em 2009 foi eleito para a Academia de Letras de Pará de Minas. www.nwm.com.br/fms

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