quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

CADA UM NO SEU LUGAR COM O QUE MERECE- FLÁVIO MARCUS DA SILVA(FOTO)






24 - Cada um no seu lugar com o que merece




- Hoje vamos conversar com o Sr. Samuel Almeida, funcionário responsável pelo recrutamento de professores na cidade. Ele vai nos falar um pouco sobre como acontece esse recrutamento e sobre como se dá o processo de seleção de professores.
[Bruno olha para o seu entrevistado e sorri]: - Boa noite Samuel. É um prazer tê-lo conosco esta noite. [Samuel balança a cabeça, mantendo-se sério]. [Bruno continua]:
- Vou começar com uma pergunta básica: Como vocês recrutam os professores para as escolas municipais da cidade?
- Bem, o ônibus do recrutamento circula por toda a cidade, de manhã e à tarde, anunciandopelo auto-falante as contratações imediatas: quase sempre, professores de todas as áreas,para trabalhar na maioria das escolas, recebendo dois salários mínimos mensais por trinta aulas semanais.
- E é fácil encher o ônibus?
- Não. Às vezes circulamos durante meses sem encontrar professores de Biologia, Física,Química e Matemática. De História, Geografia, Português e Inglês, geralmente com um mês de procura a gente encontra uns três ou quatro para cada disciplina, e a Prefeitura organiza um rodízio entre eles, em duas ou três escolas, com uma carga horária maior para cada um,resolvendo o problema. Mas isso é só até eles desistirem da sala de aula e a gente ter que correr atrás de mais professores pelas ruas da cidade. É só uma questão de tempo.
- Mas por que vocês não anunciam as contratações nos jornais locais ou nas rádios?
- Porque ninguém aparece. A gente precisa circular pela cidade de ônibus, que é pago pelos pais dos alunos, e ainda oferecer um lanche aos candidatos lá dentro [também pago pelos pais], para aparecer alguém.
- E quem pode se candidatar?
- Qualquer pessoa.
- Qualquer um? Não precisa ser formado?
- Formado em quê?
- Ora, em algum curso superior de Licenciatura.
[risos e mais risos, que logo viram gargalhadas, até o entrevistado suspirar, recuperando fôlego]: - Em algum curso de Licenciatura? Essa foi boa. Onde? Quem estuda para ser professor hoje em dia? Em que lugar o senhor vive? Nas nuvens?
- Mas quem leciona?!
- Para o senhor ter uma idéia de quem os alunos das escolas municipais têm como professores, eu vou citar só alguns exemplos: ontem mesmo, quando desembarcamos um lote de dez candidatos no prédio da Secretaria de Educação, fiquei sabendo que o Januário, açougueiro, com Ensino Médio incompleto, foi contratado para dar aulas de Biologia ànoite. A Jandira, que nem concluiu o Técnico em Contabilidade, virou professora de Matemática da noite para o dia. O Epaminondas, só porque disse adorar ler gibis, foi contratado como professor de Português, sem nunca ter concluído o Ensino Fundamental!
Para dar aulas de História, qualquer um serve: os entrevistadores nem querem saber se o candidato gosta de ler [nem mesmo se SABE ler], se tem algum conhecimento histórico,etc.; vão logo perguntando [para ficarem livres]: “Quer dar aula de História?”. E de Geografia? Meu primo Juca, que foi vendedor de sapato e conhece várias regiões do Brasil,quando resolveu largar o ramo do comércio, foi contratado para dar aulas de Geografia no Ensino Médio. E olha que ele nem concluiu o Ensino Fundamental!
- Mas vocês não encontram ninguém com curso superior, nem que seja em outras
profissões, para lecionar?
- De jeito nenhum! Foi-se o tempo que engenheiro dava aula de Matemática e advogado de História! Acabou. E eu conheço um gari semi-analfabeto que recebeu uma proposta da Secretaria de Educação para ganhar meio salário a mais para lecionar Física numa escola e recusou na hora. Ele sabia do perigo que correria. O tio dele, ex-presidiário, especialista em refinar cocaína, que havia concluído o Ensino Fundamental no presídio, foi contratado para dar aulas de Química e acabou sendo assassinado por um aluno esquizofrênico, que achava que o coitado do professor era Lúcifer em pessoa.
- E Filosofia? Quem dá aula de Filosofia?
- [risos]. De que país o senhor é? Filosofia? Acabou Filosofia. Não existe isso mais na escolas, nem Sociologia, nem Redação e nem Literatura.
- Mas como é possível?
- Não entendi.
- Os alunos não estudam Literatura?
- Meu senhor, 80% dos professores são semi-analfabetos. Eles não conhecem nada de Literatura, nem o mínimo necessário para enrolar os alunos, como fazem nas outras disciplinas [com base nas suas experiências de vida]. Literatura é coisa de gente rica, de professor de escola particular da capital – e olhe lá..., pois na capital, os colégios que não pagam salários milionários aos professores ficam a ver navios.
- E professor de Inglês?
- Qualquer pessoa que tenha passado uma temporada em um país de língua inglesa, que seja uma semana, está apta a lecionar inglês. A minha tia, por exemplo [que só conseguiu concluir na vida um curso de corte e costura por correspondência], lavou pratos durante dois meses no Canadá e, quando voltou, foi contratada imediatamente para dar quarenta aulas semanais de inglês em uma escola da cidade. Pobrezinha... Numa noite, quando ela
tentava explicar uma matéria qualquer, os alunos faziam tanta bagunça, gritavam tanto [inclusive ameaçando-a de morte], que ela resolveu fingir um desmaio e desabou no chão.
Lá do fundo, um aluno gritou: “Enfia o dedo no cú dela que ela acorda!”. [risos]. Depois disso, ela nunca mais entrou numa sala de aula, coitada.
- Mas por que as autoridades públicas não tomam providências para melhorar essa situação?
- Melhorar para quê? A maioria do povo tem é que ser dirigida pela minoria. Filho de rico é que tem que estudar em escola boa, para virar engenheiro, advogado, médico, administrador, contador, executivo, etc. Pobre não precisa nem aprender a ler direito. Pobretem é que ser passivo, aceitar as explicações dadas por aqueles que estão no poder, sem questionar, refletir ou criticar. É por isso que a Educação está desse jeito. É por isso que
ninguém quer ser professor.
- É difícil de acreditar...
- Mas é a verdade. Pergunte aos meus colegas, que trabalham comigo no recrutamento. E os pais pagam o ônibus e o lanche porque não aguentam os filhos em casa o dia inteiro. Só um ou outro pai consegue juntar muito dinheiro e mandar seus filhos para a capital, onde ainda existem algumas [poucas] escolas boas, particulares, com mensalidades que giram em torno
de R$3.000,00. Só ali é possível encontrar professor formado em faculdade, às vezes até com mestrado e doutorado, recebendo até R$10.000,00 por mês, mas isso é uma raridade.
Nas escolas públicas de nível básico, a situação é a que eu acabo de descrever para o senhor...
- Estou bestializado! Como é que pode?... [Bruno olha para o seu notebook e levanta as sobrancelhas, surpreso]: Vejo que acabo de receber um e-mail de Dona Jaciara Menezes Torres e Albuquerque, que está em sua mansão acompanhando a entrevista. Ela diz o seguinte: “Meu caro Bruno, gostaria de aproveitar este espaço para parabenizar ao prefeito e ao seu secretário de Educação pelo excelente trabalho realizado no recrutamento dos professores para as escolas municipais da nossa cidade. Fico muito feliz em perceber que no nosso município, apesar de algumas vozes discordantes, ainda vigora, para o bem da harmonia social, a filosofia do ‘Cada um no seu lugar com o que merece’. Um abraço a todos os ouvintes”.
P.S.: Esta crônica não é uma crítica à Secretaria Municipal de Educação de Pará de Minas, que tem se empenhado muito em garantir a qualidade do Ensino em nossa cidade, apesar da tradição histórica, de raízes
profundas, de desvalorização do professor e da Educação no Brasil.


QUEM É MARCUS FLÁVIO DA SILVA



Nascido em Pará de Minas- MG em 1975. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e doutorado pela Universidade federal de Minas Gerais (2002) com estágio (Doutorado- sanduíche/CAPES) na Universidade de Lisboa- Portugal (2002). Atualmente é Vice- diretor da Faculdade de Pará de Minas- FAPAM-(MG) onde já exerceu os cargos de Coordenador do Curso de História, coordenador do NUPE- Núcleo de Pesquisa, e foi professor nos cursos de História e Administração. Atualmente leciona nos cursos de Direito e Pedagogia. É autor do livro SUBSISTENCIA E PODER: a política do abastecimento alimentar nas Minas Setecentistas (Editora UFMG -2008) e de artigos publicados em periódicos e livros de História. Um de seus trabalhos foi publicado no livro HISTÓRIA DE MINAS GERAIS- As Minas Setecentistas (Editora Autentica 2007) obra vencedora do PREMIO JABUTI
2008 na categoria Ciências Humanas. Atualmente exerce também a função de Pesquisador Institucional da Faculdade de Pará de Minas junto ao Ministério da Educação, sendo responsável pelo acompanhamento dos processos e renovação de reconhecimento dos cursos de graduação da IES. Em 2009 foi eleito para a Academia de Letras de Pará de Minas.
www.nwm.com.br/fms

domingo, 25 de dezembro de 2011

OSCAR NIEMAYER: PARABÉNS E OBRIGADO -PROF.ARNALDO DE SOUZA RIBEIRO


Oscar Niemeyer: Parabéns e obrigado

* Prof. Ms. Arnaldo de Souza Ribeiro

"As ideias marxistas continuam perfeitas, os homens é que deveriam ser mais fraternos.”
Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares. Arquiteto. Encontra-se entre aqueles que mais influenciaram a Arquitetura Moderna. Nasceu no Rio de Janeiro, no dia 15 de dezembro de 1907.

1. Introdução
Na manhã desta sexta-feira, chuvosa e permeada de neblina em vários pontos da estrada que conduz a Ouro Preto, enquanto dirigia escutava um locutor que informava e advertia acerca das chuvas torrenciais que caíam em algumas cidades de Minas Gerais desde quarta-feira e recomendava que as pessoas permanecessem em suas casas e, se necessário sair, o fizessem com cuidado. Aqueles que estivessem nas estradas redobrassem a atenção, reduzissem a velocidade, não fizessem ultrapassagem em lugar proibido e evitassem o álcool.
Em seguida com entusiasmo e mistério, informou:

Completou ontem 104 anos e a comemoração foi na companhia de parentes e amigos no seu Escritório, em Copacabana, localizado de frente para o mar, local de que ele mais gosta, onde trabalha todos os dias. Trata-se do arquiteto Oscar Niemeyer. A ele os nossos parabéns e votos de felicidades.

Embora o locutor só tenha declarado o nome do aniversariante no final da notícia, por certo, todos que o ouviram, a partir da terceira palavra já sabiam de quem se tratava, considerando a singularidade do aniversariante a quem ele se referia.
Seguramente o arquiteto Oscar Niemeyer é hoje o cidadão brasileiro mais longevo em atividade, cuja vida e história se traduzem em orgulho para o povo brasileiro e, sobretudo, em exemplo a ser seguido.
Nasceu no dia 15 de dezembro de 1907, no Rio de Janeiro, também conhecida por Cidade Maravilhosa e, certamente, a teve como sua primeira fonte de inspiração. Nasceu em um tempo em que as crianças podiam jogar bola na rua, conforme ele mesmo relata.
Oscar Niemeyer já elaborou mais de 600 projetos arquitetônicos executados no Brasil e no mundo. E todos eles dotados de invulgar beleza e modernismo que, somados a sua inteligência e à força de seu caráter, o fizeram conhecido e respeitado no Brasil e no exterior. Este respeito e admiração comprovam-se pela forma com que todos o tratam e, sobretudo, pelas incontáveis homenagens e condecorações que recebeu.
Trabalhador obstinado, ainda dirige vários projetos dentre eles a renovação do Sambódromo do Rio de Janeiro, com vistas a adaptá-lo para os Jogos Olímpicos de 2016. Em recente declaração à imprensa disse que ainda existem coisas que gostaria de fazer, dentre elas um “belo projeto para Copacabana”.
As obras de Oscar Niemeyer possuem o condão de agradar a gregos e a troianos. São capazes de impressionar pessoas simples e até cosmonauta, a exemplo do que ocorreu com o russo Iuri Gagarin que, ao visitar Brasília, teria dito: “ ... é viver a experiência de aterrissar em um planeta diferente.”
Particularmente, dentre as centenas de obras de Oscar Niemeyer, sem desmerecer nenhuma delas, muito antes pelo contrário, as que mais me impressionam e admiro são: O Grande Hotel de Ouro Preto, O Conjunto Arquitetônico da Pampulha e Brasília.
2. O Grande Hotel de Ouro Preto
Em 1938, por ocasião do translado dos Restos Mortais dos Inconfidentes, para Ouro Preto, estes foram acompanhados pelo Presidente da República Getúlio Dorneles Vargas, por sua família e comitiva. Àquele tempo, era seu Prefeito o Dr. Washington Dias que os hospedou.
Naquela oportunidade Getúlio Dorneles Vargas, como bom político, em agradecimento à fraterna acolhida que tivera em Ouro Preto, perguntou ao seu anfitrião, o que ele desejava que o Presidente da República fizesse para sua cidade. E para surpresa de Getúlio o prefeito respondeu que gostaria de um hotel, no que foi atendido.
A princípio o então diretor do SPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade, entregou o projeto a Carlos Leão, que era assessor técnico do órgão e membro da equipe de arquitetos do Ministério de Educação. O local da edificação seria um terreno cedido pelo Estado, uma ladeira que ligava a Casa dos Contos ao Museu de Mineralogia.
O projeto original seria um edifício neocolonial de alvenaria de tijolos sobre uma base de pedra, com vistas a imitar os casarões do século XVIII, projeto que foi desaconselhado por Lúcio Costa, então consultor do SPHAN, com o propósito de não induzir os turistas a atribuírem valor histórico a uma construção contemporânea.
Como alternativa ao projeto de Carlos Leão foi apresentado um projeto desenhado sem maiores pretensões por Oscar Niemeyer. A beleza e a viabilidade deste projeto despertaram as atenções de todos, inclusive dos integrantes do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Ao fazê-lo, com a inteligência e a genialidade que lhes são próprias, Oscar Niemeyer conseguiu o que até então parecia impossível: harmonizar o antigo e o moderno, sem que um ofuscasse o outro. Superado este obstáculo, o seu projeto foi aprovado.
Deste modo, o despretensioso projeto arquitetônico desenhado por Oscar Niemeyer em 1938, se transformou no Grande Hotel de Ouro Preto, concluído em 1944. E hoje, 73 anos depois, consegue coabitar o mesmo espaço entre os casarões barrocos do século XVIII em perfeita harmonia e, sobretudo, atrair a atenção e visita dos guias e turistas que o incorporaram aos principais monumentos a serem visitados em Ouro Preto.
3. Conjunto Arquitetônico da Pampulha
No ano de 1940, Oscar Niemeyer conheceu o então prefeito de Belo Horizonte Juscelino Kubitschek de Oliveira e este lhe solicitou que fizesse o projeto de um conjunto de edificações a ser desenvolvido na área norte da cidade, denominada Pampulha.
Dentre estas edificações constam a Igreja de São Francisco de Assis, A Casa do Baile, o Cassino, o Museu, o Iate Clube.
Destas edificações a mais visitada e também mais conhecida é a Igreja de São Francisco de Assis, pela sua beleza, a começar pela porta principal, diretamente ligada com a parte mais bonita da lagoa. Soma-se ainda a obra de Candido Torquato Portinari, nela existente. Beleza que também gerou protestos e polêmicas por parte dos representantes da Igreja Católica, pela inserção de um cachorro junto a São Francisco de Assis. Por dezesseis anos a Igreja ficou fechada e somente em 1959, o bispo auxiliar de Belo Horizonte, Dom José Rezende Costa benzeu-a e entregou-a aos cristãos.
4. Brasília
No ano de 1956, eleito presidente do Brasil Juscelino Kubitscheck de Oliveira, assumiu o governo com o propósito de estender ao Brasil o progresso e a profícua administração que desenvolvera em Minas Gerais. No seu plano de governo, divulgado em campanha, comprometeu-se fazer o Brasil crescer 50 anos em 5, e que interiorizaria a administração do pais, conforme antes previra o Marquês de Pombal, José Bonifácio e as profecias de Dom Bosco.
Para alcançar o ousado projeto não poderia prescindir da colaboração, da inteligência e da determinação de Oscar Niemeyer e o convidou para dirigir a Novacap, empresa que urbanizou a nova capital.
No ano de 1957, foi aberto o concurso público para a escolha do plano piloto de Brasília. Lúcio Costa foi o vencedor e Niemeyer foi escolhido por Juscelino para ser responsável pelos projetos dos novos edifícios, o que foi feito em poucos meses dado a exiguidade do tempo.
Dentre esses projetos destacam-se: o Palácio da Alvorada, o Palácio do Planalto, a Esplanada dos Ministérios, o Congresso Nacional, com as famosas conchas, uma para cima e outra para baixo, para materializar a aspiração e a confirmação do desejo do povo brasileiro; a Catedral de Brasília e os prédios residenciais e comerciais.
Niemeyer chegou a definir assim os seus trabalhos na construção de Brasília:
“…quem for a Brasília, pode gostar ou não dos palácios, mas não pode dizer que viu antes coisa parecida. E arquitetura é isso - invenção.”
Realmente, Brasília materializa a invenção, a coragem e a genialidade de grandes brasileiros e por esta razão ainda impressiona àqueles que vão conhecê-la, tornando-se motivo de orgulho para todos os brasileiros.
5. Conclusão
Aproveito a data e associo-me a todos aqueles que ontem e hoje apresentaram suas congratulações ao eminente arquiteto Oscar Niemeyer, pelo seu aniversário, conforme registrado pela imprensa escrita, falada, televisa e on line, do Brasil e do exterior
Quero também cumprimentá-lo e agradecê-lo pelas magníficas obras que edificou no Brasil e no mundo. Obras que, além da beleza, são úteis a exemplo do Grande Hotel de Ouro Preto, de onde nesta noite chuvosa passo para o computador estas breves informações, diversas vezes já repetidas para amigos e turistas que se abismam diante delas, tendo em vista que suas obras de arquitetura, algumas de imediato e outras com o tempo, se transformam em obras de arte e endereço de constantes visitações.
Parabéns e muito obrigado.
Ouro Preto – Grande Hotel, sexta-feira 16 de dezembro de 2011.
* Arnaldo de Souza Ribeiro é Doutorando pela UNIMES – Santos - SP. Mestre em Direito Privado pela UNIFRAN – Franca - SP. Especialista em Metodologia e a Didática do Ensino pelo CEUCLAR – São José de Batatais – SP. Advogado e conferencista. Coordenador e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Itaúna. Professor convidado da Escola Fluminense de Psicanálise – ESFLUP – Nova Iguaçu - RJ. Sócio efetivo da Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise – ABRAFP. E-mail: souzaribeiro@nwnet.com.br

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

CATAPLANA DE BACALHAU À MODA DO CHEF ERNANE (FOTO)









Cataplana de Bacalhau à Moda do Chef

Ingredientes (l pessoa):

 Bacalhau posta alta
 Pimento verde
 Pimento vermelho
 Cerveja
 Louro
 Alho
 Cebola
 Pimenta
 Cravinho
 Batata à colher
 Coentros

Cora-se o bacalhau em azeite e coloca-se em uma terrine. Noutro recipiente refoga-se levemente a cebola, o alho, os pimentões e coloca-se tudo em cima do bacalhau. Guarnecer com batatinhas feitas à colher e regar depois com a cerveja. Quando estiver pronto decorar com pimentões vermelhos e azeitonas.






QUEM É O CHEF
Chef Ernâni Mafer é Gastrólogo graduado pela Faculdade Estácio de Sá, consultor, crítico de vinhos e Diretor Presidente do Confessionário do Dito. Qualificado em cozinha brasileira, francesa, italiana, asiática, planejamento de cardápios, nutrição, segurança alimentar, enologia, padaria, confeitaria, bares e bebidas. Participou de Roteiros Gastronômicos na França e Itália. Crítico de Vinhos - Participou de Roteiros em Vinícolas Chilenas nas regiões de: Aconcagua, Bio-Bio, Casablanca, Colchagua, Curicó, Elqui, Itata, Maipo, Malleco, Rapel e San Antonio; Participou de Roteiros em Vinícolas Argentinas nas regiões de: Mendonza, Catamarca, La Rioja, San Juan, La e Rio Negro.
http//:confessionáriododito.blogspt.com

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

HISTÓRIAS DE PESCADORES- FERNANDO MARTINS FERREIRA

HISTÓRIA DE PESCADORES


Dessa história sou testemunho ocular e dou fé, pena que seu protagonista não esteja mais entre nós para confirmá-la.
O Sr. Ênio Mendonça Marinho deve estar com certeza fazendo boas pescarias nos lagos e rios do paraíso junto com D. Zica’, sua esposa.
Meu pai e alguns amigos construíram um rancho no rio Pará, na primeira Itaoca, entre Pitangui e Martinho Campos. O dicionário diz que Itaoca, vem do Tupi e significa Casa de Pedra ou Furna.
É exatamente isso. O maciço de pedra tem no mínimo vinte metros de altura e investe em sua parte mais alta sobre o rio. Aberturas na rocha formando furnas é criatório natural de pássaros e bichos da região. Os pescadores conseguiram colocar na pedra uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e todos que ali passam, rendem suas homenagens à padroeira do Brasil.
Lugar mágico, de uma energia telúrica sem igual.
O rancho foi construído pelos próprios companheiros pescadores que transportaram toda madeira e areia através do rio, em pequenas e frágeis canoas tocadas a remo e varejão.
Ainda garoto, assisti a construção do rancho que distava uns cem metros acima da primeira Itaoca, sobre um barranco alto, protegido das cheias do rio e debaixo de frondosas árvores.
De lá, tinha-se uma vista privilegiada do rio caudaloso, de águas límpidas.
O rancho era de uma simplicidade espartana, sem toque feminino, casa típica de pescadores.
O café no bule estava sempre pronto na trempe do fogão a lenha, tarefa de quem chegava mas cedo da pescaria.
Sábado, domingo ou qualquer feriado, íamos para o rancho.
Às vezes íamos mesmo no domingo, não sem antes de assistirmos a missa dos pescadores que era celebrada às cinco horas da manhã pelo saudoso Padre Grevi na antiga matriz de Nossa Senhora da Piedade.
O Padre Grevi tinha uma particularidade, sua missa demorava no máximo trinta minutos. Dali seguíamos na Kombi do João Sapateiro ou do Geraldo seu irmão, ambos sócios do rancho, e no máximo às sete horas estávamos lá. Ao chegarmos, descíamos a tralha, varríamos todo o rancho, fazíamos o café forte, colocávamos o feijão para cozinhar no fogão a lenha e só então saíamos para pescar. Era um ritual.
Todos colaboravam e em meia hora tudo estava pronto.
O rio Pará naquela época era extremamente piscoso e de suas águas saiam belas corvinas, surubins, dourados, pacus, matrinxâs, piaus, mandis amarelo, o pirá e até mesmo o pacamão, peixe de couro, característico do rio São Francisco, cujo rio Pará é afluente.
Certa feita, em um só dia, meu pai fisgou dois belos exemplares, um com uns 18 kg e outro com uns 12 kg e duas enormes piranhas. Amarrou os dois brutos e as piranhas em uma corda e os deixou dentro do rio, com a intenção de trazê-los vivos para a casa.
No dia seguinte cadê os peixes? As piranhas cortaram a corda com seus afiadíssimos dentes e adeus peixes.
“Não se preocupe, logo a gente pega mais”, disse meu pai.
Certa vez, ele e os demais companheiros, desceram o rio até a terceira Itaoca, em busca de um cardume de piaus que tinha sido avistado naquelas paragens. Da primeira à terceira Itaoca gastava-se uma hora de viagem rio abaixo e duas horas para retornar. O Sr Enio não quis ir à busca dos piaus e me convidou para ficar pescando com ele na primeira Itaoca.
Assim fizemos e até que estávamos pescando umas boas corvinas.
De repente, ele me chamou a atenção, pois fazia um grande esforço para recolher a linha de sua carretilha PEN.
Pensávamos se tratar de um grande pacu ou até mesmo uma boa piranha. Devido ao movimento da linha. Pasmem-se: O anzol tinha entrado caprichosamente em um minúsculo buraco, bem no centro de um prato esmaltado. Daí o peso e os rodopios. Ele me disse: “Que bom que você está aqui, se eu contar ninguém vai acreditar”.
Levamos o prato para o rancho e mais tarde contamos o fato e ninguém acreditou e foi verdade, eu vi.
De outra vez, no mesmo rio Pará, no lugar denominado Porto da Formiga foram pescar meu pai Walter Martins, José Ferreira de Oliveira, Geraldo Magela dos Santos, o Sr. Gillica, seu irmão José do Pedro, José Pereira Campos e o Manoel Pereira Campos.
As canoas com bons motores cortaram rapidamente as águas rio acima.
Apoitaram a uns 250 metros acima da ponte do Porto da Formiga e lançaram suas linhas n’água. Não demorou nada e o José Ferreira fisgou um dourado que é um belíssimo peixe carnívoro de grande porte, coloração dourada, tendente ao vermelho e carne extremamente saborosa.
Peixe guerreiro, ao ser fisgado proporciona um belo espetáculo com seus enormes saltos sobre a água e aquele fisgado pelo José Ferreira era um belo exemplar com aproximadamente uns 10 kg.
Todos pararam de pescar e ficaram apreciando o espetáculo da luta do peixe e do homem.
O Sr. José Ferreira pescador experiente foi trabalhando o peixe com calma para que ele se cansasse, mas por uma fatalidade a linha passou na hélice do motor e lá se foi o peixe.
Diante da desolação do Sr. José Ferreira, o Gillica, que havia fisgado um pequeno timburé, iscou com ele o seu anzol e disse ao Sr. José Ferreira, logicamente brincando:
- “Não se preocupe, vou buscar o seu anzol”.
Atirou a linha no rio e não demorou nem dois minutos e fisgou um dourado.
Depois de muita luta conseguiu içá-lo para o barco.
Qual não foi o espanto de todos: A linhada, o anzol do Sr. José Ferreira, estava na boca do dourado.
O Gillica calmamente apanhou o material e o entregou ao Sr. José Ferreira que para riso de todos afirmava ser dele o peixe.
Se duvidarem da história pergunte ao Gillica, ao Dr. Manoel Pereira Campos e ao meu pai. Eles estão aí e podem confirmá-la.

O SOAR DA TROMBETA- FLAVIO MARCUS DA SILVA (FOTO)


23 - O soar da Trombeta
A sessão da Câmara que votaria o aumento salarial dos deputados já estava quase lotada.
Enfiados em seus ternos caros e engomados, os representantes do povo desfilavam pelos corredores do Congresso, acompanhados de seus assessores, que também esperavam ansiosos o resultado da votação, já que receberiam, com o aumento de seus chefes, um rechonchudo quinhão.
Ao final da sessão, marcada por aplausos efusivos e nenhuma voz discordante, uma turba de deputados saiu, sorridente, pela porta principal, em direção ao estacionamento. Porém,algo muito estranho os impediu de ultrapassar o final da rampa de granito: uma força magnética poderosa [ou algo parecido], que não os deixava prosseguir seu caminho de volta à abastança, agora ainda mais farta com o novo aumento salarial.
Os outros deputados e assessores se juntaram aos primeiros e forçaram a passagem, mas nada que fizessem conseguia romper aquela barreira invisível que parecia se erguer sobre todo o prédio, formando uma imensa redoma. Tentaram outros lugares, outros pontos de fuga, mas nada.
Estavam presos.
Do lado de fora, o povo se aglomerava para tentar entender o que estava acontecendo com aqueles homens engravatados e mulheres elegantes parados no final da rampa de acesso aoestacionamento. Uma senhora idosa se aproximou de um deputado e perguntou: “Por que o senhor não sai?”. Ele não respondeu. Tentou mais uma vez dar um passo, mas não conseguiu. “Não posso”, disse ele por fim, olhando nos olhos da velha, desesperado. “Eles não podem sair”, gritou a velha para a multidão, que crescia cada vez mais em torno da redoma invisível.
A noite chegou e os deputados continuavam lá, presos. Redes de TV e rádio se instalaram ao redor do Congresso, registrando tudo. Sindicatos e movimentos sociais de todo o país organizaram caravanas de partidários e simpatizantes para irem à capital testemunhar de perto aquele fato inusitado e surreal: no dia da aprovação do substancioso aumento salarial concedido pelos deputados a eles mesmos, uma força sobrenatural os impedia de sair do local da votação.
“O que você acha que vai acontecer com eles?”, perguntavam os repórteres às pessoas do lado de fora. “Eu acho que isto é um castigo de Deus, e que eles vão ficar lá dentro até apodrecerem”, respondiam alguns mais revoltados, que aos poucos foram se juntando em torno de um líder barbudo, de aspecto desleixado.
Três semanas se passaram.
Os deputados já não se encontravam mais de terno e gravata. Andavam pelo Congresso sem camisa, alguns só de cueca, calcinha e sutiã, descalços e famintos, pois o ar condicionado tinha pifado e a comida acabado. Por mais que eles tentassem desligar ou destruir as câmeras de segurança do interior do prédio, nada as impedia de continuarem registrando todos os seus movimentos, que – por um desses milagres da tecnologia – puderam ser acompanhados em todo o país, em rede nacional. Milhões de pessoas puderam ver, por exemplo, dois deputados disputando um pacote de bolachas importadas, sob o olhar atento de um assessor, que vasculhava o chão à procura de migalhas; uma deputada gorda agredindo a tapas um colega, acusando-o de ter invadido seu gabinete à procura de chocolates e outras guloseimas; a morte de um deputado idoso, que implorava a alguém do lado de fora o seu remédio do coração que, mesmo comprado na farmácia mais próxima, não passava pelo campo de forças invisível.
Nada passava pela barreira. Parentes e amigos dos parlamentares tentaram entregar-lhes comida, bebida e água, mas a redoma jogava tudo para fora novamente, com uma força descomunal.
Seis meses se passaram.
Quinze deputados haviam morrido, dez deles devorados por outros parlamentares, que não agüentaram a fome atroz que os rasgava por dentro, causando dores lancinantes em seus estômagos vazios. Estavam sujos e fediam, pois não tinham água há vários dias. Algunsenlouqueceram: pediram perdão a Deus pelos seus pecados, prometendo que nunca mais roubariam o povo; olhavam para as câmeras de segurança e, aos prantos, imploravam misericórdia, reconhecendo que aquele salário era uma afronta à pobreza da população, uma indecência, uma injustiça sem tamanho.
Do lado de fora, o líder barbudo gritava insultos e era acompanhado por uma multidão de seguidores, que mais parecia um exército infernal pronto para o ataque. No meio do povo, um jovem negro recitava, aos gritos, trechos de antigos e quase esquecidos poemas de Vinicius de Moraes: “Senhor! Tudo é blasfêmia e tudo é lodo. / Vós não vedes, Senhor, não vedes, todo / Esse povo a sofrer? / Deixai por um momento a Igreja Santa / A iniqüidade do pecado é tanta / Que Roma vai morrer!”. A multidão se inflamava e erguia foices, facas, machados, pás e picaretas, dando mostras de querer atravessar a redoma e acabar comaquilo de uma vez por todas. “Escutai, Senhor Deus, a imensa grita / Da humanidade sofredora e aflita / Que morre no pavor! / - Dai-lhe a morte no campo de batalha / Dai-lhe sangue vermelho por mortalha / - Dai-lhe a guerra, Senhor!”.
Mas a redoma não se abriu. Não houve carnificina. O fim chegou lentamente para os deputados.
Só quatro parlamentares sobreviveram. E, por isso, o povo passou a acreditar que eles eram os únicos que realmente tinham a ficha limpa. Os quatro se uniram e organizaram um movimento político no país contra a corrupção, a favor da justiça, da dignidade e da igualdade que, pela primeira vez na história, foi um sucesso e mudou radicalmente a
Política Nacional.
Foi aí que eu acordei.

QUEM É MARCUS FLÁVIO DA SILVA



Nascido em Pará de Minas- MG em 1975. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e doutorado pela Universidade federal de Minas Gerais (2002) com estágio (Doutorado- sanduíche/CAPES) na Universidade de Lisboa- Portugal (2002). Atualmente é Vice- diretor da Faculdade de Pará de Minas- FAPAM-(MG) onde já exerceu os cargos de Coordenador do Curso de História, coordenador do NUPE- Núcleo de Pesquisa, e foi professor nos cursos de História e Administração. Atualmente leciona nos cursos de Direito e Pedagogia. É autor do livro SUBSISTENCIA E PODER: a política do abastecimento alimentar nas Minas Setecentistas (Editora UFMG -2008) e de artigos publicados em periódicos e livros de História. Um de seus trabalhos foi publicado no livro HISTÓRIA DE MINAS GERAIS- As Minas Setecentistas (Editora Autentica 2007) obra vencedora do PREMIO JABUTI
2008 na categoria Ciências Humanas. Atualmente exerce também a função de Pesquisador Institucional da Faculdade de Pará de Minas junto ao Ministério da Educação, sendo responsável pelo acompanhamento dos processos e renovação de reconhecimento dos cursos de graduação da IES. Em 2009 foi eleito para a Academia de Letras de Pará de Minas.
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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

AMOR, ESSA PALAVRA DE LUXO- FLÁVIO MARCUS DA SILVA(FOTO)



21 - Amor, essa palavra de luxo

31 de dezembro de 2010.
Pará de Minas acorda hoje sob a luz fraca de um sol invisível, escondido por nuvens densas e tristes... Ouço as notícias locais no rádio. Ouço meus filhos brincarem. Eles estão felizes: sorriem, correm, derrubam coisas...; curtem a manhã como se nada mais existisse além das brincadeiras e pequenas alegrias da infância, sem qualquer preocupação com o amanhã.
Para eles o futuro não vai além daquilo que estão programando para agora, para os próximos minutos. Minha filha canta e conversa sozinha, inventando histórias, como faz seu pai em noites solitárias, quando todos estão dormindo. Mas, diferente do pai, ela não precisa escrever para fugir da dor, para não se sufocar com a alma que grita no silêncio e se debate entre monstros e abismos escuros. São histórias de borboletas e casulos, de cachorrinhos que se perdem e são achados, de patinhos que brincam na lagoa. Os desenhos ela mesma faz e colore. Os textos ela dita e eu escrevo, do jeitinho que ela conta.
Meus filhos acordam cedo. Adoram viver. Querem descobrir o mundo. O pequeno, de dois anos, percorre a casa com um tamborete nas mãos e sobe em tudo. Quer ver o que tem ali em cima, do outro lado, atrás, na frente... Quer explorar, brincar, conhecer. Ele também gosta de histórias... Parece que este vai ser o meu maior legado a eles: o amor pelos livros, pela fantasia da literatura [herança que não é pequena; ou melhor, é infinita]. Não tenho nenhuma estratégia montada para o futuro dos dois, pois sei que eles não me pertencem.
Não forço nada. Oriento, coloco limites, estimulo a paixão pela leitura, mas de forma natural, sem obrigá-los a nada. O que eu faço? Leio perto deles, levo-os até a minha biblioteca e deixo que eles a explorem, compro livrinhos e revistinhas, leio para eles,invento contos, e sinto que eles têm prazer.
Prazer. Alegria. Saúde. Espontaneidade. É isso que eu quero para os meus filhos. Que eles se descubram e descubram o mundo, sem se preocuparem com convenções estúpidas, com regras pré-definidas sobre o sucesso, que criam caminhos artificiais: projetos que são verdadeiros pacotes de felicidade, quase sempre com os mesmos ingredientes: esposa rica, marido rico, casa de luxo, bom emprego, viagens, carros, prestígio, fama, poder, riqueza...
É isso que eles realmente querem? Se for, que busquem isso, então. Mas se não for [e eles precisam aprender a difícil arte de descobrir que não é], que eles busquem outra coisa, algo que tenha a ver com eles, com o que há de mais verdadeiro e único neles.
Minha missão impossível é evitar que os artificialismos do mundo impeçam meus filhos de serem eles mesmos. Não tem jeito. Digo isso porque, apesar de todas as leituras que eu fiz, de todas as viagens de auto-conhecimento que empreendi, eu não consigo ser eu mesmo numa sociedade como a nossa. São tantas regras de conduta e de convívio social; tanto consumismo e futilidades, que não dá... simplesmente não dá...
Mas mesmo assim, eu tento mostrar aos meus filhos que no palco onde acontece este baile de máscaras que é a nossa vida, eles podem encontrar uma saída, um ponto de fuga, dentre deles mesmos: um lugar de prazer onde eles são aquilo que Deus fez, como Criador, e que, depois, nós, pecadores, ambiciosos e egoístas, destruímos. Porque eu não acredito [não consigo acreditar] que Deus tenha criado este mundo de injustiças no qual vivemos, onde deputados aumentam seus próprios salários em mais de 60%, enquanto crianças passam fome, cercadas de desamparo e solidão; onde pobres e negros são marginalizados e não conseguem estudar em boas escolas, mesmo sendo mais capazes e competentes que muitos brancos e ricos. Não. Deus não pode ter criado o mundo assim. Isso só pode ser obra do homem, imperfeito, orgulhoso, ambicioso. Por isso nossos filhos não precisam aceitar tudo que os cerca como verdades absolutas, já que esse mundo é artificial, criado por seres de vontades ilimitadas, forjadas na guerra, na violência, no consumo desenfreado, na ascensão ao poder e ao dinheiro: sempre mais, cada vez mais, infinitamente mais...
E o amor? Onde está o amor?
Tem gente que enxerga a vida como um grande tabuleiro, e as pessoas como peças de um jogo complexo, cujo objetivo único é a vitória. Nessa perspectiva, ser caridoso [sem transformar a caridade em estratégia de jogo, como fazem os políticos] é andar para trás; amar de verdade, só de amor, uma mulher pobre, sem patrimônio, é não sair do enquanto outros avançam rumo à prosperidade [não importa se não existir amor, se a
relação com o outro for simplesmente contratual, seca, cheia de vazios]; não conseguir convencer o filho a fazer um curso respeitado, como Medicina ou Direito, em uma boa universidade, é como perder um peão no jogo; se o filho expõe à sociedade o seu vício em cocaína ou a sua homossexualidade, é um rei que é eliminado do tabuleiro.
A meu ver, se houver respeito ao próximo, a vida pode seguir seu curso sem tantos formalismos e ideias prontas sobre como deve ser o trajeto. Não quero que meus filhos vejam a vida como um jogo frio, sem amor, ditado pela sociedade de consumo. Não quero isso para eles. Não quero...
Descobrir o “eu” interior original e único de cada um não é fácil, com tantos estímulos capazes de nos desviar dessa descoberta. Meu objetivo, como pai, é tentar facilitar o caminho, ajudar meus filhos a se encontrarem. Se isso é possível? Confesso que não sei.
A única coisa que eu sei, parafraseando Adélia Prado, é que falta amor...
Essa palavra de luxo.



QUEM É MARCUS FLÁVIO DA SILVA



Nascido em Pará de Minas- MG em 1975. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e doutorado pela Universidade federal de Minas Gerais (2002) com estágio (Doutorado- sanduíche/CAPES) na Universidade de Lisboa- Portugal (2002). Atualmente é Vice- diretor da Faculdade de Pará de Minas- FAPAM-(MG) onde já exerceu os cargos de Coordenador do Curso de História, coordenador do NUPE- Núcleo de Pesquisa, e foi professor nos cursos de História e Administração. Atualmente leciona nos cursos de Direito e Pedagogia. É autor do livro SUBSISTENCIA E PODER: a política do abastecimento alimentar nas Minas Setecentistas (Editora UFMG -2008) e de artigos publicados em periódicos e livros de História. Um de seus trabalhos foi publicado no livro HISTÓRIA DE MINAS GERAIS- As Minas Setecentistas (Editora Autentica 2007) obra vencedora do PREMIO JABUTI
2008 na categoria Ciências Humanas. Atualmente exerce também a função de Pesquisador Institucional da Faculdade de Pará de Minas junto ao Ministério da Educação, sendo responsável pelo acompanhamento dos processos e renovação de reconhecimento dos cursos de graduação da IES. Em 2009 foi eleito para a Academia de Letras de Pará de Minas.
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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O SABIO E O DEMONIO- FERNANDO MARTINS FEREIRA

O SÁBIO E O DEMÔNIO


Certa feita deixava um grande sábio e santo homem à cidade quando se encontrou com o demônio que conduzia uma tropa com seis cavalos.
Perguntou o servo de Deus:
- Que levas aí ó demônio?
Respondeu o demônio:
- É a mercadoria que pretendo vender na cidade.
- Poderás dizer-me que mercadoria é essa cujo peso parece cansar os teus cavalos?
- O primeiro cavalo está carregado de injustiça; o segundo leva uma bela carga de avareza; trago no terceiro, mil arrobas de vaidade; o quarto está carregado de perfídia; o quinto de egoísmo e o último o mais forte de todos está carregado de ambição.
Injustiça, avareza, vaidade, perfídia, egoísmo e ambição, repetiu o sábio cheio de espanto.
- E a quem pretende vender essa mercadoria?
- Venderei a injustiça aos magistrados, explicou o demônio. Os ricos de mim comprarão a avareza. A vaidade será adquirida pelas mulheres. A perfídia pelos políticos. O egoísmo será para os poderosos. A ambição será comprada pelos comerciantes.
- Volta com sua tropa ó demônio! Bradou com veemência o sábio. Não conseguirás um centavo. A tua mercadoria será repelida por todos!
Pouco tempo depois, repousava o santo homem sob a sombra de uma árvore, quando avistou de novo o demônio que regressava da cidade, trazendo em tranqüila marcha os seis cavalos, sem as cargas.
- A quem, ó maligno, vendestes a tua horrível mercadoria? Indagou o santo homem.
- Ao entrar na cidade, contou o demônio, encontrei um homem rico e poderoso. Interessou-se logo pelas mercadorias e quis arrematar tudo sem fazer questão de preço.
- E vendestes tudo a um só homem? Acudiu o santo assombrado.
- Sim. A um homem só. E creia-me, o exigente comprador achou pouco queria mais. Mora num suntuoso palácio de colunas azuis.
- Meu Deus! Quem mora ali é o nosso presidente. Se ele precisou de suas mercadorias, é porque pretende abolir as leis, esquecer o direito dos fracos, perseguir os humildes, e transformar-se enfim num tirano!
E concluiu desolado.
- Sim, aquele que abusa da força e do poder para negar o direito e exercer a tirania, tem por certo a alma repleta de todas as mercadorias do diabo.

(Adaptação livre conto com o mesmo nome de Malba Tahan)

"MUITO ESQUISITO" - FLAVIO MARCUS DA SILVA (FOTO)


20 - Muito esquisito


A vizinhança não gostava dele. Achava-o muito esquisito. Era um jovem calado, de olhar triste, que andava pelas ruas do bairro quase sempre de mãos dadas com a filha de seis anos[uma cópia em miniatura do pai, de quem herdara, além dos traços tristes e o olhar perdido, a timidez e o medo das pessoas].
A esposa era uma professora primária. Ele, um escritor. Mas ninguém conhecia seus livros– o que não era estranho naquela cidade, onde ler, para a maioria dos habitantes, era considerado uma perda de tempo. Porém, mesmo se houvesse ali uma cultura literária mais refinada, que não se limitasse apenas à leitura esporádica de alguns livros de auto-ajuda, ninguém seria capaz de descobrir as obras daquele misterioso escritor. Alguns vizinhos chegaram até a vasculhar a sua caixa de correio, descobriram seu nome completo e pesquisaram na internet, mas não encontraram nada sobre a sua ocupação.
O que ninguém desconfiava era que aquele jovem desagradável havia se tornado, nos últimos anos, um famoso escritor de livros de terror, que ele publicava em vários países com o pseudônimo de Daniel Zafón. Escrevia originalmente em inglês, mas havia traduções de seus trabalhos em quase todas as línguas do mundo, inclusive em português. Ganhava rios de dinheiro [algo raro entre escritores], mas vivia modestamente, numa pequena casa alugada, em um bairro tranquilo de classe média. Tinha um carro popular bem conservado, que só saía da garagem nos finais de semana, quando ia com a mulher e a filha passear pelos pequenos vilarejos das redondezas, para pescar, acampar e curtir a natureza. Doava grande parte da sua renda para instituições de caridade, que cuidavam de crianças e idosos, mas investia também em livros, sobretudo em histórias de terror [a maioria importada da Europa], e na educação da filha, que, se quisesse, quando completasse 18 anos, poderia estudar em qualquer universidade do mundo.
Na casa ao lado vivia um casal de aposentados e seu filho solteiro. O rapaz tinha a mesma idade do escritor, 32 anos, mas não podia ser mais diferente. A começar pelo tamanho.
Enquanto o escritor era magro, pequeno e de aspecto doentio, o vizinho era um armário de músculos, conquistados e mantidos com várias horas de academia por semana e, para minimizar os esforços e o tempo nos aparelhos, com algumas injeções de hormônio bovino, aplicadas, regularmente, por um amigo veterinário. Trabalhava como entregador de móveis numa loja e vendia cigarros de maconha de vez em quando; ganhava uma miséria, mas tinha um carro importado e um guarda-roupa entupido de marcas famosas e caras. Seu dinheiro era todo queimado em malhação, injeções, roupas, tênis, parcelas do carro financiado, mulheres e, é claro, nas latinhas de cerveja dos finais de semana. O resto da despesa era pago pelos pais, que o tratavam como uma criancinha mimada, aceitando seus caprichos e violências como algo normal: “Coisas de homem” – costumava dizer a mãe, sempre que recebia um soco ou um pontapé do filhinho querido.
Todas as tardes, quando chegava do trabalho, o Bad Boy colocava uma camiseta que valorizasse bem seus músculos tatuados, uma bermuda e um tênis, e ia passear na avenida com Stálin, seu cão Pit Bull, o terror da vizinhança. O animal era quase uma miniatura do dono, cheio de músculos, com dentes enormes, e andava pelos passeios sem focinheira, latindo para todo mundo.
Quando o escritor e sua filha voltavam da escola, quase sempre se encontravam com o cão e seu dono a caminho do desfile exibicionista na avenida. Pai e filha mudavam de passeio, mas mesmo assim o animal latia ferozmente para eles, enquanto o dono, embora segurasse firme a guia, fazia movimentos com o braço como se ameaçasse soltar o animal [e um leve sorriso de desprezo se desenhava em seus lábios]. A menina tremia de medo, mas o pai não dizia nada. Segurava-a firme em seus braços e seguia seu caminho sem olhar para trás.
Numa sexta-feira à tarde, a cena se repetiu; só que no momento em que o rapaz sorria e ameaçava soltar o cão no escritor e sua filha, uma dor muito forte no seu braço fez com que ele largasse a guia. Sentindo-se livre, Stálin avançou sobre a menina, sedento de sangue.
Tudo aconteceu em apenas alguns segundos, mas vou descrever a cena em câmera lenta, de forma que o leitor possa aproveitar melhor os detalhes.
Como eu dizia, Stálin avançou sobre a pobre criança com a rapidez de um touro que, enlouquecido, salta de seu cubículo em direção ao matador no meio da arena. Seu alvo era o frágil pescoço da menina, que ele queria morder com toda a sua força e estraçalhá-lo, até transformá-lo numa pasta de carne, pele e cartilagem moídas.
Enquanto corria, contraindo seus músculos num tiro de alta potência, Stálin mantinha seus olhos focados naquele pescoço que, por instinto, ele sabia ser o ponto vital da sua presa.
A menina fechou os olhos, aterrorizada.
Felizmente, ela não sentiu nenhuma dor.
Ao abrir os olhos novamente, segundos depois, num movimento involuntário das pálpebras, tudo já tinha acabado.
Dois corpos jaziam sobre o passeio: o do cão e o do dono do cão.
Como eu disse há pouco, tudo aconteceu em questão de segundos. O cão enraivecido saltou como um touro sobre a menina, mas antes de conseguir fechar sua poderosa mandíbula em torno do seu alvo, duas mãos a seguraram no ar com a rapidez de um relâmpago e ergueram o animal, que se debatia ferozmente, sem conseguir se soltar. As mãos daquele pai franzino abriram a mandíbula de Stálin até seus ossos e cartilagens se quebrarem, transformando a cabeça do animal numa planta carnívora gigante, com suas pétalas cor de sangue escancaradas, esperando a chegada de um besouro ou de um pássaro. Um som borbulhante, como um gargarejo, saía do buraco onde antes estava a boca do animal, cujos membros continuavam se debatendo violentamente no ar. Foi quando o escritor começou a morder a barriga de Stálin, puxando para fora, com os dentes, fígado, rins, estômago, tripas e outras vísceras. Em seguida [quase ao mesmo tempo], abriu o peito do animal e arrancou com as mãos coração e pulmões, puxando também traquéia, esôfago, língua e outras partes difíceis de identificar.
Os restos mortais de Stálin, espalhados pelo passeio, foram então pisoteados pelo escritor, que, sujo de sangue dos pés à cabeça, mais parecia um personagem possuído pelo demônio em uma de suas histórias macabras.
Logo à frente, o dono do cão morria de enfarte assistindo à cena.
A menina nada sofreu.
O escritor também nada sofreu.
Mas a vizinhança continuou não gostando dele...
Realmente, ele era muito esquisito.


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sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

BACALHAU A FERNANDO FERREIRA -CHEF ERNANE-(FOTO)-


Bacalhau à FernandoFerreira

 1 colher (chá) de mostarda
 600 g de bacalhau demolhado
 l kg de batatas
 leite meio gordo, q.b.
 3 cebolas brancas
 2 colheres de manteiga
 azeite fino
 farinha de trigo para envolver o bacalhau
 ½ chávena de maionese
 sal q.b.

Coza o bacalhau em leite durante 3 minutos. Coe o leite por um passador fino e reserve. Limpe o bacalhau das peles e espinhas mais fáceis de retirar e divida-o em pedaços. Com as batatas cozidas e passadas a puré, dê-lhe espessura juntando a manteiga e o leite que reservou. Tempere com sal.

Corte as cebolas às rodelas e refogue ligeiramente em bastante azeite. Retire a cebola com uma escumadeira e, na gordura, frite o bacalhau passado por farinha. Num pirex untado, espalhe metade do puré. Cubra com o bacalhau e regue com a maionese.

Disponha as rodelas de cebola e, à volta, enfeite a seu gosto com rosetas do puré que sobrou. Leve ao forno para aquecer e tostar.

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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011


19 - Na voz de Amália

A jovem namorada, cansada do tédio de uma relação que, para ela, já tinha ido longe demais, terminou com ele no dia 29 de dezembro, já com as malas prontas para um fim semana na praia com as amigas. Era para ter sido antes, mas ela não conseguia falar, com medo de prejudicar o tratamento que ele seguia contra a depressão [com remédios fortíssimos], desde que tentara se matar cortando os pulsos na banheira da sua casa, numa manhã chuvosa de segunda-feira. Foi encontrado pela faxineira, inconsciente, mergulhado na água quente e completamente tomada pelo vermelho intenso que brotava de seus pulsos abertos. Foi levado às pressas pelo caseiro ao hospital, onde se recuperou, preso a tubos e aparelhos, após uma longa transfusão de sangue. Ela tinha medo de que o término do namoro fosse mergulhá-lo de novo numa espiral de melancolia profunda que o levasse, mais tarde, a uma nova tentativa de suicídio, talvez bem sucedida. Preferiu ir adiando a conversa até não ter mais jeito.
Foi então que, com a consciência pesada pelas inúmeras traições e pressionada pelas amigas, ela decidiu terminar o namoro de uma vez por todas numa quinta-feira à tarde, quatro dias depois do Natal, enquanto tomavam café numa lanchonete do centro histórico da cidade.
Ele era funcionário de uma siderúrgica, onde trabalhava no setor contábil, e morava sozinho numa bela casa de madeira e vidro, no alto de um morro, cercada por uma floresta exuberante e assustadora. A casa era herança dos pais, falecidos em um acidente de avião quando voltavam de Portugal, onde tinham ido visitar alguns parentes. Era jovem, com dupla cidadania, mas nunca tinha saído daquela cidade, embora conhecesse muito sobre o mundo e o ser humano através dos livros, que lia com voracidade e prazer. Era dono de uma biblioteca que, além de relíquias religiosas e místicas, que iam do espiritismo ao candomblé, passando por práticas mágicas indígenas [herança da mãe], possuía uma enorme variedade de clássicos, entre contos, romances e tratados filosóficos, em várias línguas [que ele dominava fluentemente, graças a uma educação de alto nível, recebida em um colégio de padres franceses].
Na primeira vez que visitou a sua casa, a jovem namorada, que nunca tinha lido um livro na vida, ficou espantada com a biblioteca e, ao mesmo tempo, desconfiada, diante da cultura do namorado, que aquela relação dificilmente daria certo. Ela era linda, tinha a pele clara, os olhos azuis; trabalhava como vendedora em uma boutique, só gostava de música sertaneja e tinha como bagagem de leitura apenas o que seus amigos escreviam no Orkut e no Facebook.
Ele não tinha amigos. Era de pouca conversa, não gostava de sair, e sempre que um colega de espírito mais generoso se aproximava dele, era como se um campo de forças os separasse. O namoro com a bela vendedora exigia dele um esforço quase sobre-humano, pois ele tinha que sair de casa, ir a barzinhos, ouvir música sertaneja, conversar
trivialidades e, o pior, aguentar os amigos dela em intermináveis churrascos regados a cerveja nos finais de semana. Ele simplesmente não tinha assunto nessas festas, pois não entendia nada de futebol e carros, e detestava ficar na beira da piscina bebendo e comendo, enquanto o álcool ia subindo às cabeças daqueles jovens, tornando-os ainda mais insuportáveis [eles gritavam, dançavam e posavam para fotos com as latinhas de cerveja nas mãos, levantando-as em direção ao céu, às gargalhadas]. O que ele sentia não era preconceito, pois admirava a alegria e a espontaneidade daquelas pessoas, às vezes até com um pouco de inveja. No fundo, o que ele experimentava era uma sensação de inadequação, um estranhamento que beirava a angústia e, às vezes, o desespero.
Foi em meio a uma crise assim, numa segunda-feira chuvosa, depois de um longo churrasco no domingo [e com meia garrafa de vinho tinto na corrente sanguínea], que ele tentou se matar, após ligar para a namorada dizendo que a amava e que não queria perdê-la de jeito nenhum. Ela gostava dele, do seu jeito doce e olhar perdido, mas se incomodava de vê-lo fazer tanta coisa só para agradá-la, pois sabia que ele detestava sair, ouvir música sertaneja e estar com os amigos dela. O tempo que ele tinha para ler e assistir a filmes de arte, saboreando bons vinhos europeus, ele passava com ela, fazendo o que mais odiava [exceto sexo, que ambos adoravam, mas que, nos últimos tempos, vinha perdendo a energia dos primeiros meses]. Ela, por sua vez, não abria mão do que gostava. Detestava vinho, queijo gorgonzola, filmes franceses, música clássica e não tinha nada para conversar sobre livros, pois na vida só tinha lido um [e, mesmo assim, sem concluí-lo]: “A Ilha Perdida”, de Maria José Dupré.
Não dava para continuar.
O rompimento foi frio, rápido; ela nem quis terminar o suco. Uma praia ensolarada, homens sarados e muita cerveja a esperavam. Ele ficou ali, quieto, saboreando um café com conhaque e pensando na vida que lhe escapava, no tempo que não voltava mais. Trabalhava oito horas por dia numa empresa e numa função que não tinham nada a ver com ele, e, nos últimos dois anos, tinha amado uma mulher que o fazia deixar de lado o que ele mais gostava: livros, filmes e, o mais importante: o sonho de ser escritor.
Levantou-se da mesa com a certeza de que a morte não era a melhor saída, que a vida podia ser diferente, bastava ele querer.
A caminho de casa, ligou o rádio numa estação qualquer, enquanto observava pelo párabrisa do carro uma tempestade que se formava sobre a cidade. A música, um fado muito bonito na voz de Amália Rodrigues, fez com que ele pensasse no país de seus avós, na cidade onde nascera sua mãe e para onde seu pai se exilara, nos anos 80, para fugir da família e dos falsos amigos que o sufocavam no Brasil.
Lisboa. Sempre quis conhecer a velha Lisboa, suas ruas e colinas cheias de história e encanto, seus fados, seus cheiros, suas texturas e cores...
Por que não?
Naquele mesmo dia colocou a casa à venda, pediu demissão do emprego e comprou uma passagem só de ida para Portugal. Levou consigo apenas algumas roupas, três manuscritos esquecidos no fundo de uma gaveta, contendo vinte pequenos contos de terror [que ele escreveu quando tinha 18 anos], e o desejo ardente de fazer a vida valer a pena.
Em Lisboa, alugou um quarto numa pensão barata, próximo à estação de metrô Saldanha, na Avenida Almirante Reis. Comprou um notebook e se pôs a escrever, reservando uma parte do dia para ler e a outra para procurar emprego em algum jornal como cronista, revisor ou tradutor.
Alguns meses depois, suas histórias de terror começaram a ser publicadas em revistas e jornais de Lisboa, Porto e Coimbra, mas ele recebia muito pouco por elas. Foi quando um conhecido da pensão, que havia sido livreiro em Paris por mais de trinta anos, lhe deu os endereços de algumas editoras e revistas em Londres, que eram especializadas em histórias de terror e que, segundo ele, pagariam muito mais pelos seus contos. “Seus textos são muito bons, não devem ficar restritos aos jornais portugueses”. O jovem escritor achou a ideia interessante e começou a escrever em inglês, língua que dominava desde a infância [aos 9 anos, quase sem consultar o dicionário, leu todos os contos do monumental Grimms’Fairy Tales – de onde talvez tenha surgido a sua paixão por bruxas e monstros].
Suas histórias foram muito bem aceitas pelo público inglês, e como eram escritas numa língua universal, correram o mundo com uma velocidade espantosa, causando enorme sensação entre o público e a crítica especializada.
Um ano depois de chegar a Lisboa, uma coletânea de seus contos já tinha sido publicada por uma importante editora inglesa [que vendia milhões de cópias do livro nos quatro cantos do mundo] e sua primeira novela de terror já estava no prelo, sendo aguardada com ansiedade por um público ávido por tramas inteligentes, mistério e muito sangue.
Porém, ele continuou no anonimato, vivendo na mesma pensão da Avenida Almirante Reis, tomando o café da manhã na mesma pastelaria da esquina [onde pedia sempre uma tosta mista com café Sical], almoçando no restaurante da Biblioteca Nacional e jantando um sanduíche de fiambre na Casa das Sandes. Publicava seus textos sob o pseudônimo de Daniel Zafón, e fazia questão de não aparecer [ele até recusou uma entrevista no programa da Oprah Winfrey, que tinha lido um comentário elogioso sobre sua coletânea de contos, feito por ninguém menos que Stephen King, o mestre do macabro].
Num sábado de primavera, passeando pelas livrarias do Chiado, ele conheceu a mulher que em menos de seis meses se tornaria sua esposa, e com quem voltaria para o Brasil, vivendo ao seu lado, muito feliz, por mais de sessenta anos. Ela era angolana e trabalhava como bancária. Não gostava muito de livros nem de filmes, nem trocava uma cerveja por um vinho, mas era generosa, e soube, naquele momento, que ali estava o homem da sua vida e que, por ele, seria capaz de abrir mão de muitas coisas; assim como soube, também, que aquele jovem encantador e de olhar triste era muito humilde e bondoso, com uma enorme capacidade para amar e compartilhar a vida com ela, também abrindo mão de muitos de seus prazeres para satisfazê-la.
Foi assim que se conheceram, num café da Rua Garret, próximo à Praça Luiz de Camões, em Lisboa, onde conversaram por mais de duas horas, ouvindo, ao fundo, os mais belos fados portugueses, na inesquecível voz de Amália.
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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

TAPAJÓS E CARAJÁS: FURTO, FURTEI, FURTAREI
TEXTO DO PROF. JOSÉ R.B. FREIRE


Eis um artigo sobre a divisão do Estado do Pará, com uma análise feita pelo professor José R.B. Freire é uma obra-prima jornalística, que nos remete aos tempos de Padre Antônio Vieira e seus famosos sermões. Vale a pena ler todo o artigo com atenção. Excelente!

PBn P.S. - O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de
Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social (UNI RIO).
_____________________________________________________
TAPAJÓS E CARAJÁS: FURTO, FURTEI, FURTAREI



TAPAJÓS E CARAJÁS:FURTO, FURTEI, FURTAREI
TEXTO DO PROF. JOSÉ R.B. FREIRE
Eis um artigo sobre a divisão do Estado do Pará, com uma análise feita pelo professor José R.B. Freire é uma obra-prima jornalística, que nos remete aos tempos de Padre Antônio Vieira e seus famosos sermões. Vale a pena ler todo o artigo com atenção. Excelente!

PBn P.S. - O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de
Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social (UNI RIO).
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TAPAJÓS E CARAJÁS: FURTO, FURTEI, FURTAREI

José Ribamar Bessa Freire
09/10/2011 - Diário do Amazonas

Essa foi a vaia mais estrondosa e demorada de toda a história da
Amazônia.
Começou no dia 4 de abril de 1654, em São Luís do Maranhão, com a
conjugação do verbo furtar, e continuou ressoando em Belém, num
auditório da Universidade Federal do Pará, na última quinta-feira, 6 de
outubro, quando estudantes hostilizaram dois deputados federais que
defendiam a criação dos Estados de Tapajós e Carajás.


A vaia, que atravessou os séculos, só será interrompida no dia 11 de
dezembro próximo, quando quase 5 milhões de eleitores paraenses irão às
urnas para votar, num plebiscito, se querem ou não a criação dos dois
Estados desmembrados do Pará, que ficará reduzido a apenas 17% de seu
atual território caso a resposta dos eleitores seja afirmativa.


A proposta de divisão territorial não é nova. Embora o fato não seja
ensinado nas escolas, o certo é que Portugal manteve dois estados na
América: o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará, cada um
com governador próprio, leis próprias e seu corpo de funcionários.
Somente um ano depois da Independência do Brasil, em agosto de 1823, é
que o Grão-Pará aderiu ao estado independente, com ele se unificando.


Pois bem, no século XVII, a proposta era criar mais estados. Os colonos
começaram a pressionar o rei de Portugal, D. João IV, para que as
capitanias da região norte fossem transformadas em entidades autônomas. O padre Antônio Vieira, conselheiro do rei de Portugal, D. João IV,
convenceu o monarca a fazer exatamente o contrário, criando um governo
único do Estado do Maranhão e Grão-Pará sediado inicialmente em São
Luís e depois em Belém.


Para isso, o missionário jesuíta usou um argumento singular. Ele alegava
que se o rei criasse outros estados na Amazônia, teria que nomear mais
governadores, o que dificultaria o controle sobre eles. "É mais fácil
vigiar um ladrão do que dois", escreveu Vieira em carta ao rei, de 4 de
abril de 1654: “Digo, Senhor, que menos mal será um ladrão que dois, e
que mais dificultoso será de achar dois homens de bem que um só”.


Num sermão que pregou na sexta-feira santa, já em Lisboa, perante um
auditório onde estavam membros da corte, juízes, ministros e conselheiros
da Coroa, o padre Vieira, recém-chegado do Maranhão, acusou os
governadores, nomeados por três anos, de enriquecerem durante o triênio,
juntamente com seus amigos e apaniguados, dizendo que eles conjugavam o verbo furtar em todos os tempos, modos e pessoas. Vale a pena transcrever um trecho do seu sermão:


- “Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do
governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos.
Esses mesmos modos conjugam po r todas as pessoas: porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantos para isso têm indústria e consciência”.


Segundo Vieira, "os governadores furtam juntamente por todos os tempos". Roubam no tempo presente , "que é o seu tempo" durante o triênio em que governam, e roubam ainda "no pretérito e no futuro". Roubam no passado perdoando dívidas antigas com o Estado em troca de propinas, "vendendo perdões" e roubam no futuro quando "empenham as rendas e antecipam os contrato, com que tudo, o caído e não caído, lhe vem a cair nas mãos".


O missionário jesuíta, conselheiro e confessor do rei, prosseguiu:
"Finalmente, nos mesmos tempos não lhe escapam os imperfeitos, perfeitos, mais-que-perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles como se tiveram feito grandes serviços tornam carregados de despojos e ricos; e elas ficam
roubadas e consumidas".


Numa atitude audaciosa, Padre Vieira chama o próprio rei às suas
responsabilidades, concluindo:
"Em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos
príncipes de Jerusalém: os teus príncipes são companheiros dos
ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam;
são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e os poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente, seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo".


Os dois novos Estados – Carajás e Tapajós – se criados, significam
mais governadores, mais deputados, mais juizes, mais tribunais de contas,
mais mordomias, mais assaltos aos cofres públicos.


Por isso, o Conselho Indígena dos rios Tapajós e Arapiuns, sediado em
Santarém, representando 13 povos de 52 aldeias, se pronunciou criticamente
em relação à proposta. Em nota oficial, esclarece:


"Os indígenas, os quilombolas e os trabalhadores da região nunca
estiveram na frente do movimento pela criação do Estado do Tapajós,
porque essa não era sua reivindicação e também porque não eram
convidados. Esse movimento foi iniciado e liderado nos últimos anos por
políticos. E nós temos aprendido que o que é bom para essa gente
dificilmente é bom para nós.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

UMA CARTINHA AO PAPAI NOEL- FLAVIO MARCUS DA SILVA(FOTO)





22 - Uma cartinha ao Papai Noel

Querido Papai Noel,
Neste ano eu me comportei direitinho. Obedeci à mamãe e ao papai, não briguei com a minha irmã e usei o dinheiro da minha mesada com muita responsabilidade. O papai me dá 700 reais todos os meses para eu gastar com o que eu quiser, mas eu economizo 200 reais por mês. É que eu quero juntar 3.000 reais para eu levar para a Disney ano que vem e comprar um monte de coisas legais para mim.
Na escola eu também fiz tudo direitinho. Meus colegas fizeram muitas coisas erradas, mas eu não: todos os dias eles insultavam um outro menino, que veio estudar na nossa sala com uma bolsa de estudos, porque ele é pobre e negro, coitado... Eles batiam nele e o chamavam de um monte de coisas feias, como urubu, filhote de cruz credo e favelado; e ainda chamavam a mãe dele de prostituta e o pai de drogado e traficante. Só que eu não. Eu ficava caladinho. Eu não conversava com o menino porque ninguém nem chegava perto dele, só a professora, então eu não podia conversar também. Mas eu nunca bati nele nem o chamei de nomes feios.
De vez em quando umas pessoas muito pobres tocam o interfone daqui de casa pedindo um prato de comida ou um pedaço de pão. Quando sobram restos de comida nos pratos, eu junto tudo, embrulho num jornal e levo para eles. Quando não sobra comida, eu pego uns dois ou três pães, que ficam guardados no armário a semana inteira para endurecer e a empregada poder ralar para fazer farinha de pão, e jogo para eles por cima da grade. Um dia um menino que estava com eles me pediu água. Mesmo correndo o risco de sujar o piso
de granito da mamãe, eu abri o portão e deixei o coitado usar a torneira do jardim. O meu pai até chegou na hora e empurrou o menino para fora,chamando-o de pivete imundo. Eu fiquei muito triste com o papai.
Ontem esteve aqui em casa a minha tia Jaciara. Ela me contou que só existe um Papai Noel de verdade: o senhor. Ela disse que aquele Papai Noel que fica na casinha da ASCIPAM é de mentira; que o Papai Noel de verdade é um espírito superior, que só visita as residências de pessoas superiores, como nós, que merecem ser presenteadas. Foi aí que eu entendi porque os alunos bolsistas lá da escola, que são inferiores, só ganham de Natal brinquedos
ruins, enquanto nós, superiores, ganhamos brinquedos bons e caros. É que quem dá os presentes para as crianças pobres são os próprios pais delas (ou alguma instituição de caridade ou empresa), que não têm muito dinheiro, enquanto, no nosso caso, é o senhor mesmo, que vem com as suas renas mágicas visitar as nossas casas.
Aproveito esta carta também para agradecer ao senhor o helicóptero de controle remoto, o computador, o tênis Puma e o celular que o senhor me deu no ano passado. Muito obrigado, Papai Noel. Gostei demais! O helicóptero ainda está funcionando, mas eu não brinco mais com ele porque fiquei enjoado, então eu o empresto ao filho da empregada todo sábado de manhã. O senhor precisa ver a alegria do menino! (Mas acho que o senhor vê, não é?). O computador já não me serve mais, porque de uma hora para outra ele ficou muito devagar e o papai teve que comprar outro. O tênis eu tive que parar de usar porque o Eloi, meu colega, chegou com um muito mais caro do que o meu; então eu tive que pedir ao papai para comprar um de uma marca ainda mais cara, para eu não ficar para trás. E o celular, o senhor sabe... Não dá para ficar com o mesmo por muito tempo, no máximo dois ou três meses, porque sempre aparece um mais avançado, com design mais moderno e mais caro lá na escola, e a gente tem que trocar o nosso, para ninguém ficar zoando a gente.
Neste Natal, eu peço ao senhor um laptop (o melhor que tiver no mundo), porque oito colegas meus já têm os seus e eu preciso ter o meu também; uma viagem ao Japão, porque até hoje ninguém na minha sala foi ao Japão; e um celular novo (também o melhor do mundo), porque eu não posso ficar para trás.
Ah! Já ia me esquecendo! Se for possível, eu gostaria de confirmar uma coisa com o senhor. É que ontem, junto com a tia Jaciara, veio nos visitar o tio Tomás, que é deputado lá no Congresso. Ele ficou o tempo todo rindo (com a mão naquela pança enorme que ele tem), bebendo um vinho importado da mamãe (reservado para ocasiões especiais), e disse que este ano o Papai Noel DELE vai chegar bem mais gordo (e de jatinho), por causa de um aumento de mais de 60% no salário que eles mesmos se deram lá no Congresso. A tia Jaciara tinha acabado de me contar a verdadeira história do Papai Noel (ou seja, do senhor), e na hora só pude crer que o tio Tomás tinha se equivocado. Como é possível que ele possa ter um Papai Noel só dele (mais gordo do que o dos outros e que chega de jatinho e não de renas mágicas) se só existe um Papai Noel: o senhor?
Um forte abraço, blá blá blá...

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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

LABAREDAS NA ESCURIDÃO- FLAVIO MARCUS DA SILVA (FOTO)


18 - Labaredas na Escuridão


A casa ficava numa rua estreita e escura do centro histórico da cidade. Ali, num passado recente, àquela hora da noite, bêbados e mendigos dividiam as calçadas com prostitutas
desesperadas, que ofereciam seus corpos a qualquer um que passasse, muitas vezes em troca de um pão bolorento ou de um prato de sopa. Naquela noite, porém, ao caminhar pelo passeio à procura do endereço que eu trazia rabiscado num pedaço de papel, só vi sacos de lixo rasgados por cães famintos, garrafas quebradas e um gambá morto em avançado estado de putrefação. O resto era silêncio e sombras. Na mochila eu levava um caderno de anotações, uma garrafa de água e três folhas soltas de um livro há muito desaparecido.
A casa tinha dois andares e parecia abandonada: vidraças quebradas, pichações, pintura descascada e mofo nas paredes davam a impressão de que ali eu só encontraria ratos, baratas e morcegos [e talvez alguns fantasmas]. Mas o professor Fábio tinha me garantido que o ex-vereador Alípio e seu filho ainda viviam na casa, e que o livro que eu procurava, se existisse, provavelmente estaria na biblioteca.
Na entrada, acima da enorme porta de madeira maciça, esculpido em pedra sabão e já quase completamente tomado pelo mofo, o ano 1813. Bati três vezes. Pela fresta vi que uma luz mortiça, quase imperceptível, iluminou o interior. Logo em seguida, um grito raivoso ecoou como um trovão pela casa até os meus ouvidos: “Quem está aí?”. A voz não parecia ser a de alguém com quase noventa anos, por isso deduzi que fosse do filho. Respondi: “Sou amigo do professor Fábio, que trabalhou com o senhor na faculdade”. Silêncio. O homem devia estar decidindo o que fazer [ou simplesmente amaldiçoando a vida por ter lhe trazido uma visita indesejada àquela hora, obrigando-o a interromper sua insônia em meio aos livros, enquanto o pai talvez dormisse o sono artificial dos doentes terminais, dopado com morfina e tranquilizantes].
A porta se abriu pela metade e o homem que me encarou com um olhar suspeito, pouco convidativo, não devia ter mais que 50 anos. Era alto, magro, grisalho, com o cabelo cortado bem curto. Vestia uma camisa branca de algodão e uma calça social bastante surrada. “O que você quer?”, ele perguntou. Sem dizer uma palavra, abri minha mochila e tirei uma folha do livro que eu procurava. Ele a pegou, olhou-a atentamente e sorriu. “Você só tem isto?”. Tirei as outras duas folhas da mochila e respondi: “Só isto”. Ele não quis pegá-las. Abriu a porta e me convidou para entrar.
O interior da casa não tinha nada a ver com o exterior. O que do lado de fora parecia desleixo e abandono, no interior se transformava em aconchego, limpeza e simplicidade.
Ele me indicou um sofá na sala e foi à cozinha preparar um café.
O que eu sabia sobre o ex-vereador Alípio era só o que minha mãe tinha me contado uma vez, aos sussurros, na mesa de jantar, enquanto baixávamos uma garrafa de vinho tinto e meu pai roncava alto no quarto, com a televisão ligada.
Ela me disse que no início da década de 1960 ele era um vereador combativo, articulado em seus discursos, e que foi muito perseguido por apoiar o presidente João Goulart na cidade, onde a maioria das pessoas era radicalmente contra a reforma agrária, por razões óbvias.
Defendida pelo presidente Goulart em seus discursos inflamados na capital do país, a reforma da estrutura fundiária nacional era também um tema recorrente nos pronunciamentos do vereador Alípio durante as sessões da câmara municipal. Por isso [e também por ser contrário à perpetuação de duas importantes famílias no poder local, com toda a sua corja de parasitas sugando o dinheiro público sem trabalhar] ele foi
violentamente perseguido: recebia ameaças de morte todos os dias; pedras eram arremessadas nas vidraças da sua casa, onde também muros e paredes eram pichados com palavrões e boatos envolvendo sua esposa e seu filho [diziam que ele espancava o menino e a mulher sem piedade e que praticava rituais de magia negra]; todos os sábados, o vigário local organizava passeatas anticomunistas pelas ruas da cidade, durante as quais a população gritava sem parar, com os punhos erguidos: “Fora Alípio comunista!”, “Fora Alípio comunista!”...
Os meios de comunicação locais, que pertenciam às duas famílias mais ricas da cidade [que se revezavam no poder], não deixavam passar um mínimo deslize do vereador, que era apresentado ao público como um político despreparado, incompetente e louco.
O golpe militar de 1964 encerrou sua carreira definitivamente. Alípio se recolheu, com a esposa e o filho, à velha casa da família [construída no início do século XIX], passando a viver unicamente da sua aposentadoria e do que a mulher ganhava como costureira.
Nem para ir ao enterro da esposa, alguns anos depois, ele saiu de casa. Vivia recluso, juntamente com o filho, em meio a livros e jornais que ele recebia do mundo inteiro.
“Meu pai era muito amigo do autor deste livro”, disse o filho do ex-vereador ao me entregar uma xícara de café bem forte e se sentar no sofá à minha frente. “Na verdade,quem o escreveu não foi o advogado criminalista que tem seu nome publicado na capa como sendo o autor do texto [e de quem meu pai era amigo]. Foi um jovem estudante de jornalismo, muito talentoso, que foi contratado pelo advogado para escrever o livro”.
Até ali, nada de novo para mim. Eu sabia também que o contrato firmado entre os dois obrigava o jovem escritor fantasma a distribuir um exemplar do livro a todas as pessoas que fossem ao velório do advogado e a queimar os exemplares restantes. Ao que tudo indica, foi exatamente isso que ele fez.
O livro causou uma onda de choque muito grande. No próprio velório, vários exemplares foram rasgados na frente da viúva e de suas três filhas, inclusive o que tinha sido entregue ao meu pai, que chegou a gritar um palavrão antes de abandonar o salão, com lágrimas nos olhos. Quem me contou isso foi minha mãe. Ela estava lá e viu como as pessoas reagiam à leitura do texto: algumas choravam pelos cantos; outras gritavam insultos, com os olhos em chamas, apontando para o caixão; o próprio padre, ao ler algumas passagens do livro, deixou-o cair aos pés do enorme crucifixo que dominava uma parte da cena e saiu do velório em silêncio, sem nem encomendar o corpo. Minha mãe só observava, e ao ser arrastada pelo meu pai em direção ao estacionamento, trazia dentro da bolsa o seu exemplar, com a intenção de lê-lo mais tarde.
“Você sabe me dizer por que ninguém hoje reconhece ter um exemplar ou uma cópia do livro, ou ousa falar sobre o que ele continha?”, perguntei ao homem à minha frente. Ele sorriu. “Pelo visto você já conhece muita coisa sobre a história desse livro e está curioso quanto ao seu conteúdo, não é?”. Diante dessa pergunta eu apenas fiz um sinal afirmativo com a cabeça. Ele me entregou a folha que eu tinha lhe mostrado na entrada e perguntou:
“A pessoa de que trata esse fragmento é o seu pai?”. Mais uma vez fiz que sim com a cabeça.
Minha mãe leu o livro no mesmo dia do enterro, trancada no banheiro. Chorou muito, e, depois, tomada de uma emoção confusa, que ia do ódio à compaixão, arrancou as três únicas folhas que se referiam ao meu pai e à família dele, dobrou-as cuidadosamente e guardou-as na biblioteca, dentro de um livro que ficava numa prateleira bem alta, de difícil acesso: O emblema vermelho da coragem, de Stephen Crane. Em seguida ela foi ao quintal e queimou o livro do advogado na churrasqueira. Meu pai a olhava do andar de cima, com o rosto pálido e cansado, como se dez anos tivessem se passado naquele único dia. Seus olhares se cruzaram e ele se afastou em silêncio [um silêncio que dura até hoje].
Tudo isso ela me contou depois, numa outra rodada de vinho pela madrugada, após eu ter lhe mostrado as três folhas que eu tinha encontrado dentro da obra de Crane.
“Meu pai também esteve no velório..., como você já deve saber...”, disse o filho do ex-vereador, saboreando seu café.
Eu sabia.
Naquele dia, o ex-vereador Alípio abandonou sua clausura e foi se despedir do velho amigo. Ao chegar, recebeu das mãos do jovem escritor um exemplar do misterioso livro de memórias, que ele folheou com prazer. Algumas pessoas já tinham lido um ou outro trecho e se retirado; outros continuavam ali, parados, tomados pelo espanto, segurando seus exemplares abertos em alguma página específica. Ninguém nem percebeu que a chegada do ex-vereador era por si só um fato inusitado, surreal, depois de tantos anos que ele tinha permanecido fechado em sua casa, quase sem nenhum contato com o mundo exterior, a não ser através de livros e jornais.
Mas a indiferença durou só até ele começar a gargalhar, com seu livro aberto junto ao peito, atraindo para si todos os olhares [assustados, ferozes, indignados]. Seu riso estrondoso era uma afronta não só à viúva e suas filhas, mas aos presentes em geral, feridos e humilhados pelas palavras impressas naquele livrinho que, até hoje, muitos anos depois, nesta sala sombria onde escrevo este relato, me dá calafrios na espinha.
Estou olhando para ele agora...
Na capa marrom desbotada, o título em letras douradas se destaca, expressando, a meu ver, uma dor infinita: Labaredas na Escuridão.


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quinta-feira, 10 de novembro de 2011

BACALHAU COM TOMATES E PIMENTOS-CHEF ERNANE (FOTO)


Bacalhau com Tomates e Pimentos

 2 postas de bacalhau previamente demolhadas
 4 tomates maduros
 pimentos verdes
 2 colheres (sopa) de azeite
 l cebola grande descascada
 2 dentes de alho descascados
 1,5 dl de leite de coco
 farinha q.b.
 sal e pimenta preta moída na altura

Uma vez demolhado o bacalhau, seque-o muito bem. Limpe de pele e de espinhas e corte-o em lascas. pique a cebola e faça o mesmo ao dentes de alho. Mergulhe o tomate por breves segundos, em água fervente e depois, por agua fria. Tire-he a pele. Limpe-o de sementes e pique-o miudamente.

Limpe o pimento de sementes e corte-os em tirinhas. Polvilhe as lascas de bacalhau com farinha e misture de modo a que elas fiquem bem enfarinhadas. O melhor é colocar uma colher (sopa) de farinha num saco de plástico transparente e juntar as lascas de bacalhau. Feche o saco e sacuda-o energicamente, Retire o excesso de farinha.

Num tacho aqueça o azeite. Junte a cebola e o alho picados e deixe-os dourar. Acrescente as lascas de bacalhau e deixe-as fritar, mexendo com uma colher de pau. Adicione o tomate. Mexa e tempere de sal e de pimenta a seu gosto. Tenha em atenção o teor de sal do bacalhau, mesmo depois de demolhado

Adicione as tirinhas de pimento verde. Deixe cozinhar por mais dois minutos. Regue com o leite de coco. Deixe levantar fervura. Tape o tacho e deixe estufar até que tudo esteja macio. Destape o tacho e deixe ferver por mais uns breves minutos. Rectifique temperos e decore a gosto.

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O CÍNICO- FLÁVIO MARCUS DA SILVA (FOTO)


17 - O cínico


O cínico parece já não ter mais para onde subir na vida. É dono de um patrimônio imenso, que vai de fazendas e mansões a helicópteros, e goza de uma renda mensal que inveja até deputados e senadores, mesmo depois do aumento de 60% em seus salários. Grande parte dessa riqueza ele conseguiu através do seu cinismo: uma falta de vergonha, uma desfaçatez, uma impudência cevadas desde o berço, onde, bem pequeno, ele já sabia fingir o choro para conseguir o colo da mãe, esconder o pirulito embaixo do colchão para ganhar outro melhor, acusar o amiguinho de uma travessura que ele próprio cometera – coisas de criança, talvez; mas no cínico elas foram se multiplicando e tomando conta do seu espírito de tal forma que, na juventude, aliadas a uma ambição desmedida e a uma necessidade imensa de se destacar, deram origem a uma verdadeira máquina de vitórias – um estrategista de peito erguido, com um único propósito na vida: vencer: o que, para ele, significava ter muito dinheiro, um casamento de acordo com os padrões exigidos pela sociedade conservadora [de preferência financeiramente compensador],um cargo que lhe permitisse exercer poder sobre os outros, filhos brilhantes [os melhores naquilo que fizessem]... Mas para ele não importa se os meninos são apenas razoavelmente bem sucedidos em suas profissões. Ao falar deles, o cínico pinta um quadro fantasioso sobre seus dotes e vitórias, baseado apenas em alguns fragmentos de suas vidas que interessam a ele, cínico, transformando-os em verdadeiros super-heróis. Quem sofre mesmo são as pessoas obrigadas a ouvi-lo falar dos garotos: os relatos duram horas, são cheios de detalhes sobre as façanhas profissionais [e até mesmo sexuais] dos rebentos, muitas vezes comparando-os com outras pessoas, de forma a diminuí-las, ou citando garotas que lhes permitiram provar sua masculinidade viril, colocando-as, também [é claro] em uma posição de inferioridade. E com que facilidade o cínico te critica pelas costas e, logo em seguida, diz exatamente o contrário na sua frente, te olhando nos olhos, com entonação enfática, como se aquilo realmente é o que ele pensa de você... É o jogo do cínico. Ele é um bom estrategista, sabe transformar as pessoas em joguetes, colocar umas contra as outras, envenenar relações, tudo para se manter no poder, para atrair olhares de inveja e admiração. E como poucos no universo da degenerescência moral, ele sabe se cercar de bons bajuladores, a maioria tão cínica quanto ele, pois nas suas costas, muitos desses baba-sacos criticam-no, ironizam-no, riem dos seus defeitos, do seu orgulho desmedido, da sua conversa enfadonha, cansativa; mas, na sua frente, tratam-no com respeito, concordando com suas opiniões e participando das suas intrigas...
Para o cínico, muitas vezes, os fins justificam os meios. Quase sempre ele lança mão de suas relações pessoais com gente importante [construídas também na base do cinismo e do fingimento] para conquistar ainda mais prestígio e poder, ou abrir caminho para os filhos e amigos em meio à multidão dos comuns até degraus mais altos da escala social [o que, sozinhos, eles não conseguiriam, por incompetência].
Normalmente, o cinismo vem acompanhado de maldade. No cínico, qualquer desavença pessoal aciona seu desejo de vingança implacável, e ele não sossega a alma atormentada pelo ódio enquanto não prejudicar seu desafeto. Se não for bem sucedido, para aplacar sua ira, ele investiga a vida da pessoa, só para se certificar de que a situação financeira ou patrimonial dela é inferior à sua ou à de seus filhos, já que, para ele, o que determina o valor de um homem são os bens materiais que ele possui. Saber que o outro tem um salário inferior ou um patrimônio bem menor que o seu alivia a sua alma vil.
E ele geralmente vence... para os outros, para si, para a família. Ele é muito competente, perspicaz, inteligente, suas jogadas são rápidas, bem pensadas, e ele é bem recompensado por isso.
Mas como afirmou certa vez o grande escritor Oscar Wilde: o cínico pode conhecer muito bem o preço de todas as coisas...
...mas ele não conhece o seu valor.
Essa é a diferença.
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segunda-feira, 7 de novembro de 2011

VIAGEM NO TEMPO – LEMBRANÇAS DO VÔ LOURENÇO-FERNANDO MARTINS FERREIRA

VIAGEM NO TEMPO – LEMBRANÇAS DO VÔ LOURENÇO


Há homens que passam pelo mundo e não deixam absolutamente nada, há outros que deixam grandes obras e tornam-se objetos de estudos, lembrados pelo povo por suas conquistas. Há, porém, outros que não realizam nada que possa ser avaliado como extraordinário segundo os critérios humanos, mas deixam a marca da grandeza de sua bondade e de seu coração para sempre guardados em seu círculo familiar e de amigos. Assim foi o meu avô materno José Lourenço dos Santos, o Vô Lourenço.
Fisicamente era um homem alto, moreno, corpanzil enorme, semblante sereno, de fala mansa. Ouso dizer que sua calma, serenidade e bondade eram proporcionais ao seu tamanho.
Possuía mãos enormes que pareciam falar, e era um líder nato da comunidade de Meireles, em Pará de Minas. Tinha sempre o melhor conselho e a melhor solução para o problema de todos.
O casarão da fazenda possuía cinco quartos, sala de visita, salão de jantar, a cozinha onde sobressaia o fogão a lenha sempre aceso e a despensa onde também se fazia deliciosos queijos. Logo ali, no terreiro da cozinha, corria uma bica d’água cristalina, acima do abacateiro frondoso.
A casa foi instalada em local alto de onde através dos doze janelões se tinha uma bela visão panorâmica. Era o porto seguro para os viajantes e amigos que ali tinham guarida para si e seus animais.
Como o acesso à cidade era muito difícil, quando alguém adoecia na região, buscava-se o “Seu Zé Lourenço”, que cuidava do doente ministrando-lhe ervas, plantas, dispensando-lhe os cuidados necessários e se necessitasse de remoção para a cidade, era ele quem providenciava.
Braços, dedos e pernas quebrados ele mesmo tratava, procedendo ao entalamento dos membros com pedaços de madeira ou bambu.
No lombo de seu burro soberbo, um enorme exemplar da raça, e seu companheiro inseparável de andanças, ia sem demora onde fosse requisitado, sem cobrar sequer um tostão, só pelo prazer de ajudar.
Conciliador por natureza era conclamado para apaziguar brigas familiares e divergências entre vizinhos.
Era dono de uma risada única, alta, cristalina e contagiante, própria das pessoas que são de bem com a vida. Carregava consigo sempre duas coisas: seu inseparável chapéu e aquela tossezinha crônica fruto do inseparável cigarro de palha de milho.
Nas festas da comunidade, estava sempre à frente arrecadando animais, objetos e alimentos a serem leiloados na quermesse. Organizava também mutirões de ajuda aos vizinhos para capina, roçada, colheita e construção de casa para quem necessitava.
Era incansável o “Seu Zé Lourenço”, porém acho que uma de suas maiores virtudes era saber escutar.
Escutar de verdade é tarefa para gente paciente, para pessoa madura que não está afim de “vencer” discussões, nem sobrepor sua vontade, mas de encontrar a verdade.
A nós crianças, seus netos, ele dispensava a mesma atenção que dava a um adulto. Como nos sentíamos importantes!
Eu e meu irmão Ernando sempre íamos à fazenda estar com ele nas férias escolares.
Pela manhã, bem cedinho acordava-nos para o café que era feito no fogão à lenha. Café forte colhido, torrado e moído ali mesmo na fazenda.
Para o desjejum servia-nos queijo fresco, farofa de queijo ou então um delicioso feijão “balanceado” que era feito na banha de porco, lingüiça defumada, carne de porco cozida, conservada em lata com gordura, cebola, ovos e farinha de mandioca.
Até hoje sinto o gosto, o aroma do café coado em coador de pano e com isso me vem à memória o canto do carro de bois, o tropel de um cavalo, e o abrir e o bater de uma porteira.
Depois do desjejum, íamos para o curral ordenhar as vacas. Ali tomávamos mais uma “canecada” de leite quente, espumoso, tirado na hora.
O irmão Ernando tinha uma habilidade danada e o vô sempre deixava duas ou três vacas para ele ordenhar. Aliás, mesmo sendo mais novo do que eu um ano, era muito esperto e tinha também uma facilidade enorme para cavalgar. Ele e o cavalo pareciam um corpo só, não havia sobressaltos, nem sacolejos e muito menos solavancos quando montava.
Eu, já naquela época gostava das vacas leiteiras, ficava na beira do curral, admirando-lhes o porte, a capacidade produtiva, suas crias, etc.
O gosto permanece até os dias atuais, me encanto ainda vendo uma vaca leiteira de alta produção.
Vejo-a como um animal perfeito, uma máquina produtora de leite.
Após a ordenha íamos ajudá-lo na lida da fazenda. Uma enxadinha era dada a cada um dos irmãos e íamos capinar o pomar ou o arrozal.
Após o almoço era hora de apartar o gado.
A recompensa vinha um pouco mais tarde quando nos levava para nadar no riacho de águas límpidas que cortava suas terras ou para uma pescaria de lambaris.
Ficávamos ansiosos aguardando por esses momentos, mas ele ensinava que o trabalho vinha antes da diversão.
A programação também incluía visitas às fazendas de seu irmão Cândido, também grande conhecedor de plantas e ervas. Do Quinzinho Cornélio, ou a de seu grande amigo João de Melo Franco, o João do Júlio.
Esse, apesar de possuir grandes extensões de terras e muito gado, era admirador profundo de São Francisco de Assis e assim como o santo, vivia modestamente.
Sua alimentação era a mais natural possível, basicamente coalhada e pão doce, daí o chamarem também de João Coalhada.
Ajudou muita gente, principalmente os pobres da região. Para a sua fazenda íamos sempre para um dedo de prosa ou para ajudá-lo nas tarefas pequenas como debulhar milho.
Ouvíamos histórias do santo de sua predileção enquanto saboreávamos a famosa coalhada.
À noite, na fazenda do vô, após as atividades tomávamos um banho de chuveiro com água quente, graças a um engenhoso sistema hidráulico e serpentina.
Como não havia energia elétrica, lamparinas e lampiões espalhados iluminavam a casa.
Acocorados sobre o fogão a lenha, ouvíamos histórias contadas por ele até o sono chegar.
Dormíamos em colchões de palha de milho, aquele barulhinho gostoso, o coaxar dos sapos, o uivar de um lobo na serra, o pio de uma coruja no mourão da porteira, o mugido do gado no pasto, o canto suave da água correndo na bica.
Nem que vivesse cem anos poderia esquecer.
A morte para ele veio cedo, quando contava com 62 anos deixando viúva Maria Felizarda dos Santos, a Vó Dica e seis filhos:
- José Lino (Professor José Lino – Floricultura Pomar);
- Maria Rita (minha mãe);
- Orlando Maurício (“in memoriam”. Que saudade!);
- Olavo dos Santos (“in memoriam”, Olavo da Mercearia Central, do Guarani Futebol Clube, pai do Orivaldo da Peixaria);
- Lourenço (Floricultura Amor Perfeito);
- Dalmo dos Santos (o Tio Dalmo de eterna alegria).
Morreu de morte que não manda aviso.
Eta parceria danada essa tal de morte. Com ela não há negociação, pois se houvesse o vô Lourenço, docemente a convenceria a deixá-lo aqui mais um pouco para vivenciar seus netos ou ajudar mais um pouco as pessoas.
Não lhe faço louvação gratuita, pois sempre se diz dos mortos que foram bons.
A admiração, o respeito, a serenidade e a bondade que despertava, fazia dele um homem especial.

Sua benção vô Lourenço!

DO LIVRO: CONTANDO HISTÓRIAS...(EDIÇAO ESGOTADA)