quinta-feira, 15 de setembro de 2011

"CARRAPICHOS" FLÁVIO MARCUS DA SILVA


9 - Carrapichos


Tive a ideia desta crônica quando fui buscar meus filhos na escola um dia desses. Desci do carro, feliz da vida [se não me engano era uma sexta-feira], e ao caminhar em direção ao portão, onde alguns pais já aguardavam a saída de seus rebentos, vi que as barras da minha calça estavam cheias de carrapichos. E de dois tipos diferentes: um deles, com pequenos espinhos [finos como agulhas de insulina], embolava-se no tecido em grandes aglomerações, puxando e enroscando as áreas afetadas da calça [da mesma forma como se comporta, na minha imaginação, um tumor maligno nos tecidos do corpo]; e o outro, sem espinhos visíveis [mas com uma capacidade de aderência ainda maior que a do primeiro], grudava-se na calça com tanta determinação e confiança, que na sua imobilidade “daquinão- saio-daqui-ninguém-me-tira”, parecia uma daquelas lagartas que dormem na superfície de uma folha de couve, entregue à própria sorte numa horta abandonada: na verdade, os deste segundo tipo constituíam uma colônia de seres que podiam ser confundidos com dezenas de pequenas taturanas esverdeadas e achatadas, que pareciam dotadas de uma certa integridade corpórea, de uma unidade, mas que, ao serem extraídas da calça, dividiam-se em milhares de pedacinhos, exigindo dos meus dedos uma habilidade que eles nunca tiveram, e do meu ser uma paciência que, depois de tantas provações como professor de História ao longo dos anos, vinha passando, naqueles dias, por uma fase de escassez desesperadora.
Essa introdução [talvez um pouco excessiva] foi só para mostrar a você, leitor, que no meu universo particular, o carrapicho representa um papel no mínimo dispensável.
Mas o que eu quero mesmo, com isso tudo, é explicar a representação [ou visão] que eu tive, naquele momento, da vida como um espaço agreste repleto de pés de carrapicho, de todos os tipos: carrapicho-rasteiro, carrapicho da calçada, carrapicho-de-beiço-de-boi, carrapicho-grande, etc.
Corrijo-me: não da vida como um todo, mas daquilo que ela nos reserva, até o fim, de pequenos problemas a serem resolvidos no dia a dia. Pense de novo nos carrapichos.
Imagine-se caminhando em um terreno onde haja abundância dessas leguminosas. Você não os vê, mas eles estão lá, à espreita, camuflados na paisagem, sorrateiros, com seus espinhos e ganchos preparados para o leve salto que os destacará da natureza selvagem; e quando você menos espera, eles já estão grudados em você, em alguma parte do seu corpo, quase sempre em blocos, embolados. Na maioria das vezes você não os sente, mas sabe que tem alguma coisa ali, esperando para ser eliminada, extraída, extirpada, despachada. Porém, nem todos são assim. Muitos carrapichos incomodam de verdade, espetam, puxam, repuxam e você não aguenta ficar com eles grudados no corpo por muito tempo.
Esses carrapichos do tipo que espeta e incomoda, e que precisam ser expulsos imediatamente, são, na sua vida, aquela privada que entope, a lâmpada do quarto que queima [impedindo a esposa de se olhar no espelho], a máquina de lavar que estraga, a chupeta do bebê que some, o tanque de combustível do carro que fura e a internet que pifa.
Você tem que resolver o problema rápido, pois, do contrário, como viver? [Essa é uma das grandes angústias do capitalismo. Somos dependentes demais daquilo que o dinheiro pode comprar].
Dos outros carrapichos, que não tornam a sua vida insuportável, mas estão lá, e que quando você os vê, parecem rir da sua cara, zombeteiros e arrogantes, posso citar, por exemplo, os pombos que infestam o meu telhado há mais ou menos quatro anos, o amassado na lateral esquerda do meu carro, a porta do armário da cozinha que está bamba, o engasgado do carro que, segundo um mecânico, “deve ser problema de velas” [e eu nem sabia que carro tinha vela], a sujeira das placas do aquecedor solar, as formigas que fazem o que querem na minha cozinha à noite, etc. São carrapichos que eu carrego comigo no meu dia a dia, anotados até na agenda [com a recomendação de serem eliminados o mais rápido possível], juntamente com “ir ao médico”, “ir ao dentista”, “ir à igreja”, “começar uma dieta”. [Abro aqui um parêntese para explicar que esse carrapicho que eu chamo de “dieta” já se transformou num aglomerado em mim, num tumor (por enquanto benigno) difícil de ser extirpado, de tão enraizado que ele se encontra: são vários carrapichos reunidos num bloco compacto, que já se confunde com o meu corpo (e eu já nem ligo muito para ele) – tanto é que neste exato momento eu estou arrotando um macarrão (miojo) com queijo, sardinha e azeite (muito azeite) e meia garrafa de vinho tinto seco; e amanhã, em Belo Horizonte, vou comer uma lasanha de frango e baixar mais meia garrafa de vinho, coroando o jantar com uma torta de chocolate. Mas segunda-feira... Ah, segunda-feira...].
Mas a vida é assim mesmo. Chega uma hora que a gente se cansa de ser certinho demais e acaba tendo que se acostumar com alguns carrapichos grudados ao nosso corpo. O segredo é carregá-los numa boa, avaliando regularmente a área afetada, o grau de comprometimento do “tecido”. [Por exemplo: eu faço dieta de segunda a quinta,direitinho, e quando saio dela, na sexta, sábado e domingo, não exagero muito. Faço exercícios todos os dias (20 minutos de musculação e 50 de bicicleta ergométrica – que eu pedalo lendo, pois nunca consegui me acostumar com a ideia de pedalar sem sair do lugar: por isso eu uso o livro para fugir da academia e viajar por outros mundos, sem tirar a bunda da bicicleta e sem parar de suar). Tudo bem, sou gordinho (ainda não sou um gordo mórbido ou “grande obeso”, como dizem os portugueses), mas meu colesterol e minha glicose ainda são considerados excelentes, e não tenho nenhum outro problema grave de saúde (pelo menos por enquanto). Não vou me estressar demais com isso e deixar de tomar meu vinho e comer minha torta de limão ou de chocolate com uma certa regularidade e abundância comedidas (às vezes não tão comedidas). Comer é uma arte, e eu amo a arte...].
Aqueles carrapichos incômodos, que espetam, puxam e repuxam, que sejam extraídos imediatamente [ou você vai ficar com a privada entupida ou sem internet em casa?]: Tudo bem, eu sei que tem gente que fica sem internet em casa, porque não tem nem computador, e que outros nem privada têm, mas aqui estou me referindo a pessoas de uma condição social parecida com a minha, dependentes de uma certa comodidade capitalista que, embora não seja a das classes mais abastadas do sistema, não chega ao nível das necessidades básicas dos miseráveis deste país, que acordam às cinco da manhã para trabalhar numa empresa fazendo o que não gostam, ganhando uma miséria, só para enriquecer seus patrões e se sentirem úteis e honrados.
Como eu dizia, que sejam retirados e eliminados os carrapichos que incomodam de verdade, mas, sinceramente, não vejo necessidade de nos estressarmos demais com os outros, que só precisam ser monitorados com cuidado, e, em caso de “metástases” descontroladas, de aumento excessivo do “tumor”, que ganhem prioridade na lista de cirurgias emergenciais e sejam extirpados.
Vamos aproveitar melhor nosso curto tempo de vida nesse planeta para fazer o que realmente gostamos, de verdade, do fundo da alma. Se você gosta de catar carrapichos, que bom para você. Eu não gosto. Prefiro escrever crônicas e contos, ler, amar e cuidar daminha família, com tempo para curtir, para ter prazer...
E enquanto isso a barriga cresce, os pombos se reproduzem, o carro segue caindo aos pedaços...
E a gente vai vivendo...

www.nwm.com.br/fms

Nenhum comentário:

Postar um comentário