quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Em "Flores Brancas na noite escura da alma" Flávio Marcus da Silva (foto) nos leva a pensar em um desfecho trágico.Mas o final é surpreendente!! Confira!!


10 - Flores brancas na noite escura da alma



Ele tinha 15 anos. Era magro, feio e triste.
No começo era só o desprezo dos colegas e professores. Ninguém sabia seu nome nem conversava com ele. Suas notas eram medíocres, passáveis, indicando inaptidão e falta de talento, o que o colocava, dentro da classificação estabelecida informalmente pelos diretores e supervisores, no “ponto morto”, naquela posição que, embora não representasse um risco sério para a imagem da escola, não contribuía em nada para o seu engrandecimento institucional, sempre atrelado ao ranking dos colégios e aos primeiros lugares nos vestibulares das grandes universidades de elite.
Ele simplesmente não existia.
Pelo menos até o dia em que se dirigiu à mesa da professora, suando frio e tremendo, mudo, mas implorando ajuda com o olhar aflito e desesperado, com os dedos inquietos abrindo e fechando os botões da camisa; e a mulher, concentrada em alguns trabalhos que corrigia, fingia não tê-lo percebido, como se ele fosse uma peça decorativa surgida do nada, quase invisível.
Enquanto isso, os outros alunos mantinham-se em silêncio, alguns estudando, outros
enviando mensagens pelo celular, desenhando, escrevendo...
Até que, não suportando mais a angustiante espera [ele já estava ali há mais de três minutos], um uivo de agonia saiu do fundo da sua alma, arrancando de seus pulmões e garganta toda a força necessária para devastar a indiferença dos colegas e da professora – e junto com esse grito de horror, um caldo escuro de diarréia explodiu no seu traseiro,
marcando com uma enorme mancha marrom e fétida o tecido claro de sua calça desbotada.
A professora se levantou num salto e agarrou seu braço com força, puxando-o para fora da sala. No corredor, uma funcionária da escola repreendeu-o por não ter ido ao banheiro a tempo, levando-o em seguida para se lavar.
A partir desse dia a indiferença e o desprezo dos colegas se converteram em crueldade. Ele se transformou no alvo principal de todas as chacotas e piadinhas de corredores, e mesmo na sala, durante as aulas, comentários maldosos eram lançados aqui e ali, levantando risos abafados e silêncios constrangedores, sempre sob o olhar tranquilo e distante do professor.
Ele continuou não participando dos trabalhos em grupo e não encontrando ninguém para conversar no recreio, mas não era mais um Zé ninguém, um simples criador de indiferenças, pois os outros o notavam, olhavam para ele e riam – o que, no entanto, feria mais, doía mais, tornando-o cada vez mais amargo e triste.
Festinhas eram organizadas, passeios a fazendas e sítios aconteciam todos os meses e ele nunca era convidado. Seus únicos amigos eram os livros, que ele começou a ler também na escola, durante o recreio, embaixo de um enorme caramanchão, bem afastado do burburinho incessante dos outros adolescentes, que brincavam e conversavam em suas rodinhas.
Mas mesmo em seu refúgio de solidão, às vezes lhe chegavam bilhetinhos ofensivos e zombeteiros, quase sempre trazidos por um garoto vesgo e narigudo, com um leve retardo mental, mas que havia sido aceito pelos outros como uma espécie de mascote, sempre pronto a cumprir as ordens dos líderes do bando ou das menininhas ricas, acostumadas em casa e na escola com paparicos e servilismos.
Um dia, o menino vesgo foi ao caramanchão levando uma pequena caixa de isopor fechada. Disse que era um presente dele, um pedido de desculpas por todos os bilhetinhos que ele havia trazido. Deixou-a ali, em suas mãos, e saiu correndo pelo pátio.
Sua primeira reação foi desprezar a caixa, deixá-la ali mesmo no caramanchão, fechada, intocada, e ir embora. Mas depois de alguns minutos de reflexão, resolveu abri-la. Não se surpreendeu com o que viu; mas diante daquela imagem repugnante, que lhe dizia, em seu silêncio asqueroso “Você é a escória da escória, o estorvo do estorvo: nada”, ele sentiu como se uma noite escura tomasse conta da sua alma naquele exato momento: uma sensação penosa: uma dor profunda revirando as densas sombras do seu ser, que depois se acalmava, para logo em seguida começar de novo – como uma dor de parto, mas na alma, no âmago da sua existência, do seu espírito pisado, massacrado, cuspido.
Deixou ali a caixa cheia de fezes, de diferentes cores e consistências, como se fossem de várias pessoas, e dirigiu-se à saída do colégio, disposto a voltar só dois dias depois, para a realização do seu único e último ato.
Passou a tarde e a noite sem dormir, sem comer, e o dia seguinte todo, se preparando, se organizando, pensando em todos os detalhes do seu plano. Só interrompia o trabalho para ler Walt Whitman, Tolstoi, Edgar Allan Poe, Willian Burroughs e Allen Ginsberg, e para recitar em voz alta trechos de seus poemas preferidos, sobretudo os de Ginsberg em seus momentos mais sombrios: “A ti, Céu depois da morte, Único abençoado no Vazio, nem luz nem escuridão, Eternidade Sem Dias...”. E continuava, arquitetando tudo, escritos e rabiscos jorrando de suas mãos para o papel em jatos contínuos – orgasmos múltiplos de sangue sem interrupção.
Quando entrou na escola vestindo um pesado casaco de lã em pleno verão ninguém achou estranho. Na verdade, ninguém notou nada. Ele sabia que seria assim, por isso não se preocupou. Entrou no banheiro e se trancou num dos boxes sanitários, para aguardar o início das aulas.
Oração da Manhã. Avisos.Vozes e passos em tropel pelos corredores. Silêncio.
Era o momento de agir.
Atravessou o corredor em direção à sua sala com a mão direita enfiada dentro do casaco. A aula tinha acabado de começar. O professor de História continuava seu discurso pomposo sobre a economia capitalista, citando, como exemplos, pais de alunos ricos da classe, grandes empresários da cidade que, juntamente com juizes e políticos, eram ali reverenciados através de seus filhos [a maioria arrogante e estúpida, mas digna de elogios e paparicos simplesmente por serem filhos de quem eram].
Entrou sem pedir licença e se colocou diante da turma, ao lado do professor, que emudecera de susto ao vê-lo se aproximar vestido daquele jeito, com o ar cansado e sombrio, olhos avermelhados, o cabelo despenteado, ensebado. Parecia um louco; mas ninguém se moveu.
Ficaram ali, estatelados, atônitos, estarrecidos, os olhos esbugalhados de espanto, de medo.
Professor e alunos continuaram mudos e estáticos enquanto ele tirava de dentro do casaco um enorme maço de folhas, distribuindo-as, uma a uma, a todos os presentes. Eram centenas de poemas que ele escrevera nos dois dias anteriores, sobre amor, amizade, compaixão, generosidade e humildade; citações bíblicas que mostravam a simplicidade dos ensinamentos de Cristo: o amor ao próximo, o perdão, o desapego às coisas materiais; textos que ele mesmo escrevera sobre a sua própria dor, mas que terminavam sempre com mensagens de esperança e paz.
Ao entregar seus escritos, andando pelas filas de carteiras como se dançasse ao som de uma melodia celestial, ele dava um beijo na testa de cada um de seus colegas, inclusive daqueles que haviam contribuído com a sua cota de matéria fecal para o presente na caixa de isopor.
Dali ele saiu para as outras salas, onde também espalhou seus textos. Pregou-os em todos os murais; lançou-os nos banheiros, na secretaria, na lanchonete, nas quadras, na sala de vídeo, nos laboratórios, deixando, ao final do percurso, depois de tudo distribuído, um manuscrito de trinta páginas [encadernado em capa dura] embaixo do caramanchão – o velho e solitário caramanchão, que o acolhera como um amigo durante todo o tempo em que ali viveu sua solidão junto aos livros, e que naquele dia florescia com uma exuberância jamais vista: cobria-se de flores brancas e ternas que, brilhando ao sol, pareciam querer ilustrar o título da primeira e última obra daquele jovem e triste poeta: “Flores brancas na noite escura da alma”.

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