quinta-feira, 17 de novembro de 2011

LABAREDAS NA ESCURIDÃO- FLAVIO MARCUS DA SILVA (FOTO)


18 - Labaredas na Escuridão


A casa ficava numa rua estreita e escura do centro histórico da cidade. Ali, num passado recente, àquela hora da noite, bêbados e mendigos dividiam as calçadas com prostitutas
desesperadas, que ofereciam seus corpos a qualquer um que passasse, muitas vezes em troca de um pão bolorento ou de um prato de sopa. Naquela noite, porém, ao caminhar pelo passeio à procura do endereço que eu trazia rabiscado num pedaço de papel, só vi sacos de lixo rasgados por cães famintos, garrafas quebradas e um gambá morto em avançado estado de putrefação. O resto era silêncio e sombras. Na mochila eu levava um caderno de anotações, uma garrafa de água e três folhas soltas de um livro há muito desaparecido.
A casa tinha dois andares e parecia abandonada: vidraças quebradas, pichações, pintura descascada e mofo nas paredes davam a impressão de que ali eu só encontraria ratos, baratas e morcegos [e talvez alguns fantasmas]. Mas o professor Fábio tinha me garantido que o ex-vereador Alípio e seu filho ainda viviam na casa, e que o livro que eu procurava, se existisse, provavelmente estaria na biblioteca.
Na entrada, acima da enorme porta de madeira maciça, esculpido em pedra sabão e já quase completamente tomado pelo mofo, o ano 1813. Bati três vezes. Pela fresta vi que uma luz mortiça, quase imperceptível, iluminou o interior. Logo em seguida, um grito raivoso ecoou como um trovão pela casa até os meus ouvidos: “Quem está aí?”. A voz não parecia ser a de alguém com quase noventa anos, por isso deduzi que fosse do filho. Respondi: “Sou amigo do professor Fábio, que trabalhou com o senhor na faculdade”. Silêncio. O homem devia estar decidindo o que fazer [ou simplesmente amaldiçoando a vida por ter lhe trazido uma visita indesejada àquela hora, obrigando-o a interromper sua insônia em meio aos livros, enquanto o pai talvez dormisse o sono artificial dos doentes terminais, dopado com morfina e tranquilizantes].
A porta se abriu pela metade e o homem que me encarou com um olhar suspeito, pouco convidativo, não devia ter mais que 50 anos. Era alto, magro, grisalho, com o cabelo cortado bem curto. Vestia uma camisa branca de algodão e uma calça social bastante surrada. “O que você quer?”, ele perguntou. Sem dizer uma palavra, abri minha mochila e tirei uma folha do livro que eu procurava. Ele a pegou, olhou-a atentamente e sorriu. “Você só tem isto?”. Tirei as outras duas folhas da mochila e respondi: “Só isto”. Ele não quis pegá-las. Abriu a porta e me convidou para entrar.
O interior da casa não tinha nada a ver com o exterior. O que do lado de fora parecia desleixo e abandono, no interior se transformava em aconchego, limpeza e simplicidade.
Ele me indicou um sofá na sala e foi à cozinha preparar um café.
O que eu sabia sobre o ex-vereador Alípio era só o que minha mãe tinha me contado uma vez, aos sussurros, na mesa de jantar, enquanto baixávamos uma garrafa de vinho tinto e meu pai roncava alto no quarto, com a televisão ligada.
Ela me disse que no início da década de 1960 ele era um vereador combativo, articulado em seus discursos, e que foi muito perseguido por apoiar o presidente João Goulart na cidade, onde a maioria das pessoas era radicalmente contra a reforma agrária, por razões óbvias.
Defendida pelo presidente Goulart em seus discursos inflamados na capital do país, a reforma da estrutura fundiária nacional era também um tema recorrente nos pronunciamentos do vereador Alípio durante as sessões da câmara municipal. Por isso [e também por ser contrário à perpetuação de duas importantes famílias no poder local, com toda a sua corja de parasitas sugando o dinheiro público sem trabalhar] ele foi
violentamente perseguido: recebia ameaças de morte todos os dias; pedras eram arremessadas nas vidraças da sua casa, onde também muros e paredes eram pichados com palavrões e boatos envolvendo sua esposa e seu filho [diziam que ele espancava o menino e a mulher sem piedade e que praticava rituais de magia negra]; todos os sábados, o vigário local organizava passeatas anticomunistas pelas ruas da cidade, durante as quais a população gritava sem parar, com os punhos erguidos: “Fora Alípio comunista!”, “Fora Alípio comunista!”...
Os meios de comunicação locais, que pertenciam às duas famílias mais ricas da cidade [que se revezavam no poder], não deixavam passar um mínimo deslize do vereador, que era apresentado ao público como um político despreparado, incompetente e louco.
O golpe militar de 1964 encerrou sua carreira definitivamente. Alípio se recolheu, com a esposa e o filho, à velha casa da família [construída no início do século XIX], passando a viver unicamente da sua aposentadoria e do que a mulher ganhava como costureira.
Nem para ir ao enterro da esposa, alguns anos depois, ele saiu de casa. Vivia recluso, juntamente com o filho, em meio a livros e jornais que ele recebia do mundo inteiro.
“Meu pai era muito amigo do autor deste livro”, disse o filho do ex-vereador ao me entregar uma xícara de café bem forte e se sentar no sofá à minha frente. “Na verdade,quem o escreveu não foi o advogado criminalista que tem seu nome publicado na capa como sendo o autor do texto [e de quem meu pai era amigo]. Foi um jovem estudante de jornalismo, muito talentoso, que foi contratado pelo advogado para escrever o livro”.
Até ali, nada de novo para mim. Eu sabia também que o contrato firmado entre os dois obrigava o jovem escritor fantasma a distribuir um exemplar do livro a todas as pessoas que fossem ao velório do advogado e a queimar os exemplares restantes. Ao que tudo indica, foi exatamente isso que ele fez.
O livro causou uma onda de choque muito grande. No próprio velório, vários exemplares foram rasgados na frente da viúva e de suas três filhas, inclusive o que tinha sido entregue ao meu pai, que chegou a gritar um palavrão antes de abandonar o salão, com lágrimas nos olhos. Quem me contou isso foi minha mãe. Ela estava lá e viu como as pessoas reagiam à leitura do texto: algumas choravam pelos cantos; outras gritavam insultos, com os olhos em chamas, apontando para o caixão; o próprio padre, ao ler algumas passagens do livro, deixou-o cair aos pés do enorme crucifixo que dominava uma parte da cena e saiu do velório em silêncio, sem nem encomendar o corpo. Minha mãe só observava, e ao ser arrastada pelo meu pai em direção ao estacionamento, trazia dentro da bolsa o seu exemplar, com a intenção de lê-lo mais tarde.
“Você sabe me dizer por que ninguém hoje reconhece ter um exemplar ou uma cópia do livro, ou ousa falar sobre o que ele continha?”, perguntei ao homem à minha frente. Ele sorriu. “Pelo visto você já conhece muita coisa sobre a história desse livro e está curioso quanto ao seu conteúdo, não é?”. Diante dessa pergunta eu apenas fiz um sinal afirmativo com a cabeça. Ele me entregou a folha que eu tinha lhe mostrado na entrada e perguntou:
“A pessoa de que trata esse fragmento é o seu pai?”. Mais uma vez fiz que sim com a cabeça.
Minha mãe leu o livro no mesmo dia do enterro, trancada no banheiro. Chorou muito, e, depois, tomada de uma emoção confusa, que ia do ódio à compaixão, arrancou as três únicas folhas que se referiam ao meu pai e à família dele, dobrou-as cuidadosamente e guardou-as na biblioteca, dentro de um livro que ficava numa prateleira bem alta, de difícil acesso: O emblema vermelho da coragem, de Stephen Crane. Em seguida ela foi ao quintal e queimou o livro do advogado na churrasqueira. Meu pai a olhava do andar de cima, com o rosto pálido e cansado, como se dez anos tivessem se passado naquele único dia. Seus olhares se cruzaram e ele se afastou em silêncio [um silêncio que dura até hoje].
Tudo isso ela me contou depois, numa outra rodada de vinho pela madrugada, após eu ter lhe mostrado as três folhas que eu tinha encontrado dentro da obra de Crane.
“Meu pai também esteve no velório..., como você já deve saber...”, disse o filho do ex-vereador, saboreando seu café.
Eu sabia.
Naquele dia, o ex-vereador Alípio abandonou sua clausura e foi se despedir do velho amigo. Ao chegar, recebeu das mãos do jovem escritor um exemplar do misterioso livro de memórias, que ele folheou com prazer. Algumas pessoas já tinham lido um ou outro trecho e se retirado; outros continuavam ali, parados, tomados pelo espanto, segurando seus exemplares abertos em alguma página específica. Ninguém nem percebeu que a chegada do ex-vereador era por si só um fato inusitado, surreal, depois de tantos anos que ele tinha permanecido fechado em sua casa, quase sem nenhum contato com o mundo exterior, a não ser através de livros e jornais.
Mas a indiferença durou só até ele começar a gargalhar, com seu livro aberto junto ao peito, atraindo para si todos os olhares [assustados, ferozes, indignados]. Seu riso estrondoso era uma afronta não só à viúva e suas filhas, mas aos presentes em geral, feridos e humilhados pelas palavras impressas naquele livrinho que, até hoje, muitos anos depois, nesta sala sombria onde escrevo este relato, me dá calafrios na espinha.
Estou olhando para ele agora...
Na capa marrom desbotada, o título em letras douradas se destaca, expressando, a meu ver, uma dor infinita: Labaredas na Escuridão.


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