segunda-feira, 7 de novembro de 2011

VIAGEM NO TEMPO – LEMBRANÇAS DO VÔ LOURENÇO-FERNANDO MARTINS FERREIRA

VIAGEM NO TEMPO – LEMBRANÇAS DO VÔ LOURENÇO


Há homens que passam pelo mundo e não deixam absolutamente nada, há outros que deixam grandes obras e tornam-se objetos de estudos, lembrados pelo povo por suas conquistas. Há, porém, outros que não realizam nada que possa ser avaliado como extraordinário segundo os critérios humanos, mas deixam a marca da grandeza de sua bondade e de seu coração para sempre guardados em seu círculo familiar e de amigos. Assim foi o meu avô materno José Lourenço dos Santos, o Vô Lourenço.
Fisicamente era um homem alto, moreno, corpanzil enorme, semblante sereno, de fala mansa. Ouso dizer que sua calma, serenidade e bondade eram proporcionais ao seu tamanho.
Possuía mãos enormes que pareciam falar, e era um líder nato da comunidade de Meireles, em Pará de Minas. Tinha sempre o melhor conselho e a melhor solução para o problema de todos.
O casarão da fazenda possuía cinco quartos, sala de visita, salão de jantar, a cozinha onde sobressaia o fogão a lenha sempre aceso e a despensa onde também se fazia deliciosos queijos. Logo ali, no terreiro da cozinha, corria uma bica d’água cristalina, acima do abacateiro frondoso.
A casa foi instalada em local alto de onde através dos doze janelões se tinha uma bela visão panorâmica. Era o porto seguro para os viajantes e amigos que ali tinham guarida para si e seus animais.
Como o acesso à cidade era muito difícil, quando alguém adoecia na região, buscava-se o “Seu Zé Lourenço”, que cuidava do doente ministrando-lhe ervas, plantas, dispensando-lhe os cuidados necessários e se necessitasse de remoção para a cidade, era ele quem providenciava.
Braços, dedos e pernas quebrados ele mesmo tratava, procedendo ao entalamento dos membros com pedaços de madeira ou bambu.
No lombo de seu burro soberbo, um enorme exemplar da raça, e seu companheiro inseparável de andanças, ia sem demora onde fosse requisitado, sem cobrar sequer um tostão, só pelo prazer de ajudar.
Conciliador por natureza era conclamado para apaziguar brigas familiares e divergências entre vizinhos.
Era dono de uma risada única, alta, cristalina e contagiante, própria das pessoas que são de bem com a vida. Carregava consigo sempre duas coisas: seu inseparável chapéu e aquela tossezinha crônica fruto do inseparável cigarro de palha de milho.
Nas festas da comunidade, estava sempre à frente arrecadando animais, objetos e alimentos a serem leiloados na quermesse. Organizava também mutirões de ajuda aos vizinhos para capina, roçada, colheita e construção de casa para quem necessitava.
Era incansável o “Seu Zé Lourenço”, porém acho que uma de suas maiores virtudes era saber escutar.
Escutar de verdade é tarefa para gente paciente, para pessoa madura que não está afim de “vencer” discussões, nem sobrepor sua vontade, mas de encontrar a verdade.
A nós crianças, seus netos, ele dispensava a mesma atenção que dava a um adulto. Como nos sentíamos importantes!
Eu e meu irmão Ernando sempre íamos à fazenda estar com ele nas férias escolares.
Pela manhã, bem cedinho acordava-nos para o café que era feito no fogão à lenha. Café forte colhido, torrado e moído ali mesmo na fazenda.
Para o desjejum servia-nos queijo fresco, farofa de queijo ou então um delicioso feijão “balanceado” que era feito na banha de porco, lingüiça defumada, carne de porco cozida, conservada em lata com gordura, cebola, ovos e farinha de mandioca.
Até hoje sinto o gosto, o aroma do café coado em coador de pano e com isso me vem à memória o canto do carro de bois, o tropel de um cavalo, e o abrir e o bater de uma porteira.
Depois do desjejum, íamos para o curral ordenhar as vacas. Ali tomávamos mais uma “canecada” de leite quente, espumoso, tirado na hora.
O irmão Ernando tinha uma habilidade danada e o vô sempre deixava duas ou três vacas para ele ordenhar. Aliás, mesmo sendo mais novo do que eu um ano, era muito esperto e tinha também uma facilidade enorme para cavalgar. Ele e o cavalo pareciam um corpo só, não havia sobressaltos, nem sacolejos e muito menos solavancos quando montava.
Eu, já naquela época gostava das vacas leiteiras, ficava na beira do curral, admirando-lhes o porte, a capacidade produtiva, suas crias, etc.
O gosto permanece até os dias atuais, me encanto ainda vendo uma vaca leiteira de alta produção.
Vejo-a como um animal perfeito, uma máquina produtora de leite.
Após a ordenha íamos ajudá-lo na lida da fazenda. Uma enxadinha era dada a cada um dos irmãos e íamos capinar o pomar ou o arrozal.
Após o almoço era hora de apartar o gado.
A recompensa vinha um pouco mais tarde quando nos levava para nadar no riacho de águas límpidas que cortava suas terras ou para uma pescaria de lambaris.
Ficávamos ansiosos aguardando por esses momentos, mas ele ensinava que o trabalho vinha antes da diversão.
A programação também incluía visitas às fazendas de seu irmão Cândido, também grande conhecedor de plantas e ervas. Do Quinzinho Cornélio, ou a de seu grande amigo João de Melo Franco, o João do Júlio.
Esse, apesar de possuir grandes extensões de terras e muito gado, era admirador profundo de São Francisco de Assis e assim como o santo, vivia modestamente.
Sua alimentação era a mais natural possível, basicamente coalhada e pão doce, daí o chamarem também de João Coalhada.
Ajudou muita gente, principalmente os pobres da região. Para a sua fazenda íamos sempre para um dedo de prosa ou para ajudá-lo nas tarefas pequenas como debulhar milho.
Ouvíamos histórias do santo de sua predileção enquanto saboreávamos a famosa coalhada.
À noite, na fazenda do vô, após as atividades tomávamos um banho de chuveiro com água quente, graças a um engenhoso sistema hidráulico e serpentina.
Como não havia energia elétrica, lamparinas e lampiões espalhados iluminavam a casa.
Acocorados sobre o fogão a lenha, ouvíamos histórias contadas por ele até o sono chegar.
Dormíamos em colchões de palha de milho, aquele barulhinho gostoso, o coaxar dos sapos, o uivar de um lobo na serra, o pio de uma coruja no mourão da porteira, o mugido do gado no pasto, o canto suave da água correndo na bica.
Nem que vivesse cem anos poderia esquecer.
A morte para ele veio cedo, quando contava com 62 anos deixando viúva Maria Felizarda dos Santos, a Vó Dica e seis filhos:
- José Lino (Professor José Lino – Floricultura Pomar);
- Maria Rita (minha mãe);
- Orlando Maurício (“in memoriam”. Que saudade!);
- Olavo dos Santos (“in memoriam”, Olavo da Mercearia Central, do Guarani Futebol Clube, pai do Orivaldo da Peixaria);
- Lourenço (Floricultura Amor Perfeito);
- Dalmo dos Santos (o Tio Dalmo de eterna alegria).
Morreu de morte que não manda aviso.
Eta parceria danada essa tal de morte. Com ela não há negociação, pois se houvesse o vô Lourenço, docemente a convenceria a deixá-lo aqui mais um pouco para vivenciar seus netos ou ajudar mais um pouco as pessoas.
Não lhe faço louvação gratuita, pois sempre se diz dos mortos que foram bons.
A admiração, o respeito, a serenidade e a bondade que despertava, fazia dele um homem especial.

Sua benção vô Lourenço!

DO LIVRO: CONTANDO HISTÓRIAS...(EDIÇAO ESGOTADA)

Um comentário:

  1. Parabéns,que delícia de texto, tenho certeza que muitos gostariam de ter conhecido o vô Lourenço somente pela sua descrição maravilhosa. Ô tempo bão q não volta mais...saudades...

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