quinta-feira, 18 de agosto de 2011

"DESPIDO" FLAVIO MARCUS DA SILVA

                                            
                                                               
                                                                 5 - Despido



Ele chegou em casa por volta de oito da noite. Tirou a roupa e, de frente para o espelho,apalpou a indesejada barriguinha, que crescia a uma velocidade espantosa desde que completara trinta anos (embora já tivesse experimentado várias dietas: da sopa, da proteína, do carboidrato, dos pontos, do tipo sanguíneo, etc.). Aproximou o rosto do espelho e observou as rugas que se formavam na testa e ao redor dos olhos, os pêlos que saíam das duas narinas cheias de muco, a barba de cinco dias falhada nos pontos onde as cicatrizes de espinha eram mais profundas, o cabelo oleoso e despenteado, o olhar vazio, sem vida.
Era seu aniversário de trinta e três anos. Estava sozinho em casa, sem qualquer esperança de receber uma visita ou um telefonema. Não tinha amigos e há muitos anos não dava notícias à família, que vivia no interior. Ocupava um cargo importante no Estado, mas odiava o seu trabalho. Todos os dias era a mesma rotina de processos, procurações, requerimentos e ofícios; o mesmo formalismo no vestir, andar e falar; a mesma sensação de vazio, que nem o prestígio e o alto salário conseguiam preencher. Seus únicos prazeres eram o passeio pelo centro da cidade após o expediente (quando visitava livrarias e jantava em restaurantes requintados) e a TV a cabo, que assistia todas as noites em casa, deitado no sofá da sala, completamente nu.
Naquela noite ele trouxe para casa um bolo de aniversário – com recheio de nozes e cobertura de chocolate –, que ele havia encomendado em uma confeitaria perto do prédio onde trabalhava. Depois de se despir, levou o bolo e uma latinha de coca-cola para a sala, onde ligou a televisão e se acomodou no sofá, preparando-se para assistir a um episódio da última temporada do seu seriado americano favorito. Com a mão esquerda (sem usar faca ou qualquer outro talher), serviu-se de um pedaço do bolo, lambuzando a boca e o queixo enquanto comia. Do seu nariz escorria um muco ralo e persistente, que ele espalhava pelo rosto com as mãos e depois limpava no peito, na barriga ou nas almofadas do sofá.
Às duas da madrugada ele desligou a TV, debruçou-se numa das janelas que davam para a rua, na frente da casa, e acendeu um cigarro. Deve ter ficado ali uns dez minutos fumando e observando a rua deserta, até que um velho casal de aposentados que morava na vizinhança apareceu na calçada, do outro lado, e começou a fuçar o lixo do vizinho. (Era um casal esquisito: muito ricos, mas viviam como mendigos, comendo restos de comida jogados no lixo por donos de restaurantes e vestindo roupas velhas distribuídas por associações de caridade. De suas incursões noturnas, traziam para casa tudo que achavam ser de utilidade, espalhando pelos quartos, salas e banheiros uma infinidade de objetos que nunca seriam usados).
Ele conhecia a história daquele casal (sabia das suas maluquices e do desprezo que tinham pela sociedade), mas mesmo assim resolveu tentar uma abordagem. Chamou-os, tentando não gritar (para não acordar os vizinhos): “Olá! Psiu!”. A mulher observava atentamente uma cabeça de boneca, segurando-a com as duas mãos, bem perto dos olhos, quando recebeu um cutucão do marido. Da janela, o rapaz fazia sinais, pedindo para que o casal se aproximasse. Quando os dois atravessaram a rua e pararam em frente ao portão da casa, ele disse: “Eu tenho aqui um bolo... Vocês querem um pedaço?”. O velho fez que sim com a cabeça.
O que havia sobrado do bolo foi entregue ao casal, que pareceu nem notar a nudez do rapaz quando ele se aproximou do portão. A velha colocou o bolo junto com a cabeça de boneca em uma sacola de papel e saiu na frente, sem dizer nada. O velho ficou parado, olhando a casa e as plantas do jardim por alguns segundos, depois baixou a cabeça e seguiu a mulher.
Ao ver que os dois haviam virado a esquina, o rapaz entrou. Foi à cozinha, fez um café bem forte, acendeu um cigarro e esperou o dia raiar.
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