quinta-feira, 25 de agosto de 2011

PÔR DO SOL NO CAMPO FLAVIO MARCUS DA SILVA


6 - PÔR DO SOL NO CAMPO


Desde que perdeu sua fortuna e teve que vender quase todos os seus bens para pagar os credores, o velho fazendeiro ceifava e punha para secar ele mesmo as gramíneas que cresciam ao redor de sua casa, conduzindo-as, depois de secas, em uma velha carroça até o curral, onde alimentava com o feno as dez vacas leiteiras que possuía, seu único sustento naqueles tempos de crise.
Viúvo e solitário, sem amigos, vivendo a trinta quilômetros do arraial mais próximo, sem nada para ocupar seu tempo livre [a não ser os poucos livros que encomendava a um mascate que passava por ali de mês em mês, com quem às vezes trocava um dedo de prosa sobre a política na Corte], o velho fazendeiro, ao abrir a janela do seu quarto em uma bela manhã de domingo, no início do outono de 1828, sentiu seu coração encher-se de alegria quando viu chegar seu filho Miguel, em uma carroça puxada por dois cavalos estropiados, trazendo com ele sua jovem esposa Amália e seu filhinho Amadeu, nascido naqueles dias.
Cinco anos depois, no final de uma tarde fria de maio, enquanto colocava o feno numa velha carroça de madeira, o fazendeiro lembrava-se da chegada do filho como uma benção de Deus, um milagre que o salvara da Morte,expulsando-a de sua casa no momento em que ela já se erguia, com a foice em punho, para abatê-lo – sem complicação nenhuma, já que ele próprio tinha tudo preparado numa das gavetas da cozinha: uma porção de ervas venenosas, que cresciam no seu jardim, mas que, para que fossem mortais, tinham que ser preparadas de uma maneira especial, respeitando-se a época da colheita, a maturação das plantas, os horários, as misturas corretas das folhas e a temperatura.
E tudo isso estava pronto naquele domingo – o veneno guardado na gaveta, à espera –,quando o filho chegou, reconciliador, disposto a fazer as pazes com o pai [depois de quinze anos], e trazendo, para a alegria da casa, uma esposa bondosa e uma criança cheia de amor para dar.
Foi o que lhe devolveu a vida.
Mas lá estava ele, juntando o feno com um garfo ao pôr do sol, enquanto o filho cuidava das vacas, a nora preparava uma sopa e o neto brincava com pedrinhas e gravetos embaixo de uma frondosa árvore, de sombra acolhedora.
De repente, um vento forte começou a soprar, vindo de várias direções, levantando e espalhando o feno que se encontrava na carroça.
Essa imagem das plantas secas voando para todos os lados fez-lhe pensar sobre a sua vida, que, ele sentia, aproximava-se do fim, às vésperas de completar 75 anos:
Penso que a maior parte do que eu plantei, eu colhi... Veja isto, velho... Neste feno há gramíneas e leguminosas de diversas qualidades e tamanhos que, quando não são ingeridas pelas vacas, são absorvidas pelo solo como adubo, que vai alimentar outras vidas, nesta e em outras gerações...
Ora, não é assim a própria vida?
Como eu disse, muito do que eu plantei, eu já colhi. A solidão amarga e triste que eu vivi durante anos só pode ter sido fruto do meu egoísmo e da maldade que eu pratiquei na juventude e nos anos de abastança, guiado pelo meu desejo de poder e riqueza...
Ao outro que me desprezava, eu dei o meu desprezo, plantando assim o desprezo na minha vida... A humilhação que eu sofri, eu paguei com a humilhação que eu fiz o outro sofrer, plantando assim a humilhação na minha vida... Vinganças, traições... Julguei e espalhei boatos sobre pessoas que eu nem conhecia, só para prejudicá-las... E se eu estendi a mão a alguém, foi por puro interesse... Maldade, perversidade, cinismo, maledicência... Tudo isso eu plantei...
Mas será que eu já colhi todo o mal que eu fiz?
Não. Eu não colhi tudo... Veja estas folhas e talos que voam ao vento, seu velho imbecil...
Veja os frutos da sua colheita... Eles vão alimentar outras vidas, que continuarão depois que os vermes já tiverem comido toda a sua carne...
Meu filho... Meu neto... O que eles colherão do que eu plantei?...
Que seja só o bem, meu Deus, só o bem...
E o vento soprava forte, enquanto o sol se punha no horizonte, numa confusão de azuis, roxos, alaranjados e rosas; e o feno dourado continuava seu vôo, chegando até onde o pequeno Amadeu brincava, embaixo da árvore. Ele construía uma cabana para as suas pedrinhas, que representavam ele, a mãe, o pai e o avô. E ao perceber o feno que se juntava ao pé da árvore, quando o vento já se acalmava, ele teve a ideia de usá-lo como parede e teto para a sua construção, onde, ele acreditava, sua família viveria feliz e em paz por muitos e muitos anos...
Para terminar, um belo poema de Fernando Pessoa, escrito em 1913:
Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

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