quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O MISTERIO DA CAIXA PRETA -PARTE II FLAVIO MARCUS DA SILVA






                                                         
                         
                                      4 - O mistério da caixa-preta – Parte II


[O piloto fala]:
Vou registrar tudo...
Vejo à minha frente, pelo vidro da cabine (onde deveria estar simplesmente a noite escura que nos cerca), um rapaz de olhar cansado, mas ao mesmo tempo iluminado, cheio de vida.
Sou eu – tenho certeza que esse rapaz sou eu –, mas ele não tem o meu rosto, o meu cabelo, o meu corpo; talvez o brilho do seu olhar se pareça um pouco com o meu...– não sei se o brilho, mas certamente alguma coisa no olhar (ou por trás do olhar...). Veste-se como um mendigo e está caminhando pelas ruas de uma cidade suja e fedorenta: eu sinto o cheiro da cidade: um cheiro de podridão, de fezes e vômito; vejo a sujeira acumulada na rua sendo pisada por pessoas e cavalos, que correm de um lado para outro, sem parar. Olho para um prédio em construção que, com certeza, não é da nossa época, nem desse país...
‘Eu’ olho? Sou eu?
O que eu faço ali, meu Deus?
Um homem me persegue, eu o vejo se aproximar, caminhando lentamente pela rua imunda: um homem que fará de tudo para me destruir. Eu corro, desesperado, mas ele está no meu encalço. Veste-se com os paramentos, adornos e insígnias de um oficial bem colocado na hierarquia administrativa da época (mas que época? Onde?). Entro na multidão de gente suja, que fala uma língua que eu não conheço (Polonês? Alemão?), e, de repente, ele está bem na minha frente, olhando para mim: esse olhar... O olhar do lobo que encontra a sua presa... Vejo-o aqui, refletido no vidro desta cabine, neste avião: esse olhar que me chega do passado, abrindo com seu ódio as névoas do tempo...
Não o vejo mais.
Estou agora deitado na grama de um jardim, próximo a um riacho. Sou um velho e não
consigo falar. Da minha boca escorre uma baba branca, que uma mão feminina limpa com um lenço bordado, de fino tecido. Não vejo o rosto da moça, mas sinto a sua presença reconfortante, o seu toque delicado, e ouço a sua voz dizendo: “Obrigada por tudo...
Obrigada”. Sou um idoso que se aproxima da morte; mas não sou aquele rapaz cinqüenta anos mais velho. Sou outra pessoa, em outro lugar, em outra época – uma época anterior à que viveu o rapaz. Percebo isso pela minha roupa, pela minha peruca e pelo som de uma música que me chega de algum lugar atrás de mim (uma música composta naqueles dias, sendo tocada ali pela primeira vez; não sei como explicar essa minha certeza). Sou um velho que viveu uma juventude completamente diferente da que teve aquele jovem (que também sou eu), embora com a mesma carga de sofrimento e dor, talvez ainda mais pesada (eu sinto isso).
Sou agora uma mulher que, afobada, puxa a sua filha pelas ruas de uma cidade que não me é estranha. Ouço falarem a minha língua, sinto cheiros familiares: amendoim torrado, pipoca, canela, pequi. Entro numa casa pobre e subo as escadas até um quarto onde um grupo de pessoas se reúne em torno de um moribundo. Meu pai. Não o reconheço em meio aos lençóis imundos, respingados de sangue, mas esse homem é meu pai, o pai daquela mulher que sou eu. Uma senhora gorda de meia idade me abraça, aos prantos, enquanto minha filha se dirige à cama, chorando, e cai sobre o corpo quase sem vida do avô. Meu pai, meu pai... Esse homem não é meu pai (não o pai deste piloto que vos fala). Meu pai morreu jovem, eu me lembro dele, do seu rosto, do seu sorriso... A menina, minha filha (mas eu não tenho filha!), abraçada ao avô, levanta-se e olha para as pessoas ao seu redor: eu vejo as suas mãos trêmulas, sinto a sua dor e, lá no fundo, bem no fundo da sua alma, sinto uma presença maligna, um resto de maldade... Ela precisa de mim, que sou sua mãe; da mesma forma que aquela jovem do passado precisou do velho que, no final da vida, recebeu de suas mãos agradecidas os últimos gestos de reconforto, as últimas carícias...
A senhora gorda me olha e me beija a face. Segura firme as minhas mãos. Não a conheço, mas sinto que ela está aqui também, neste avião... Suas mãos são fortes, seu amor é imenso: eu posso contar com ela, e minha filha também... De repente sinto um calafrio e lá está ele: o lobo. Ele está próximo à cama, sério, com o semblante triste; mas de toda a desgraça que caiu sobre a minha família, eu posso dizer: foi ele o causador; e sinto (naquele momento) que ainda vou sofrer muito em suas mãos. Não é mais aquele oficial da magistratura ou do exército daquela cidade imunda; é um jovem de no máximo vinte anos, mas que traz na alma uma maldade de séculos (e eu vejo isso em seu olhar: o mesmo olhar que me encarou com ódio naquela cidade perdida no tempo e no espaço, em meio à multidão). Ele está aqui por algum motivo: aqui, neste quadro de tristeza, de dor e luto: neste quarto sombrio e triste que é o do meu pai moribundo; mas também aqui, neste avião: ele está aqui, entre nós, talvez tendo as mesmas visões fantasmagóricas e inexplicáveis...
E a minha filha? Eu olho para ela, vestida como uma criança pobre da década de 10 ou
(não sei bem), sem reconhecê-la, mas sabendo que é minha filha. Aproximo-me dela, trago-a para junto de mim, e a encaro nos olhos; e vendo agora a cena (enquanto avançamos rumo ao desconhecido, sem nenhum contato com o mundo exterior, sem nenhuma chance de socorro), sinto a presença dela, dessa mesma menina, ao meu lado, deitada na grama junto ao riacho... O que eu fiz por essa criança?
E de repente me vejo de novo naquela cidade suja (agora longe do meu perseguidor),
entrando em um barraco de madeira cercado de lama, com ratos correndo para todos os
lados. Ali dentro está minha mãe doente e faminta. Dou-lhe um pedaço de pão e leio para ela algumas passagens da Bíblia, o que lhe alivia um pouco o sofrimento e o cansaço causados pela tuberculose. Seu corpo treme a cada palavra minha...
Mas não é que elas estão ali também? A minha filha com seu pranto no quarto do avô
moribundo e a jovem ao lado do velho na grama ouvindo música... A mãe daquele jovem mendigo que sou eu é a filha daquela mãe desesperada que sou eu e, talvez, uma amiga, sobrinha ou mesmo filha daquele velho inválido que sou eu também! São a mesma pessoa...
Não... O mesmo espírito!
[Longo silêncio]
Outras cenas... Outros homens, outras pessoas (jovens e velhos, mulheres e crianças) que são eu. Vi tudo... Outros amigos, em vários lugares, em várias épocas, que se repetem, para me fortalecer, para me ajudar: a senhora gorda aparece três vezes (e ela está aqui conosco nesta viagem – eu sei que está –, não como uma velha gorda, mas como um senhor calvo, de óculos grossos – eu o vi na entrada e sei que é ela, eu sei...); o lobo faminto (cheio de ódio e maldade) aparece em todas as cenas para me destruir, mas acaba me fortalecendo cada vez mais (no riacho ele é um pescador que olha para trás, erguendo um peixe, e me encara, sentindo prazer por me ver decrépito e inútil): e ele também está aqui, neste avião, eu sei: já não carrega mais todo aquele ódio de séculos: já sofreu o bastante para se corrigir, para se purificar: seus filhos e netos já sofreram muito por ele...
Todos estão aqui, com outros rostos (eu me lembro deles na entrada: são eles...).
Olhe para mim, Joel [Joel García é o co-piloto], deixe-me ver seus olhos... É você... Não há dúvida. No seu último suspiro, o pai daquela mulher que sou eu abriu os olhos, e você está lá, Joel... Vejo seu olhar naquele olhar, um brilho apagado e triste, mas é você... E agora te vejo também em outros rostos... Em outras épocas e lugares...
Você entendeu? Nossa missão acabou... Sinta a recompensa, Joel... Você está sentindo?
Ele está lá atrás, junto com os outros. Nós conseguimos...
[Silêncio]
Eu vi, Joel, eu vi o que ele fez. Foi terrível! Nós o ajudamos, meu amigo... Ele foi salvo e segue agora conosco para uma outra missão, livre dos sofrimentos que o atormentaram e torturaram por séculos. Ele não vai cedo demais (não existe cedo demais). Ele é jovem (o seu corpo é jovem), mas seu espírito está pronto para uma outra vida...
Eu o batizei, Joel. Seu pai é meu amigo, um militar digno e honesto, mas triste, muito triste. Eu o batizei nesta vida e o acompanhei até aqui, trazendo junto com ele a sua mãe, uma jovem bondosa e cheia de amor, que nos ajudou várias vezes no passado (neste e em outros.). E como eu sofri, Joel... Como eu cresci e me aperfeiçoei nessa grande jornada!
Como nos aperfeiçoamos! Desse garoto eu fui pai, mãe, amigo, filho, por várias vezes, e
agora sou seu padrinho em Cristo, nosso Pai, que nos conduz de volta, juntos, à sua casa, pois Ele precisa de nós, neste momento: de nós treze – juntos – para uma nova missão. E tem que ser agora. Por isso estamos aqui...
Sinta a recompensa, Joel... Não é maravilhoso? Você sente também... Todos lá atrás estão sentindo a mesma alegria, a mesma sensação de dever cumprido, o mesmo regozijo, o mesmo encantamento...
Mas por que temos consciência disso? Por que essa verdade nos foi revelada? Será que
vamos nos esquecer de tudo quando o avião cair?
[Silêncio]
Esta música... Você está ouvindo, Joel? É a mesma música que eu ouvi deitado na grama, no jardim, às margens daquele riacho, enquanto recebia os cuidados daquele espirito perturbado que nos fez chegar aonde chegamos (a este avião, a esta paz, a esta alegria), e que agora está ali atrás, entre os passageiros, salvo, ao lado da mãe...
Esta música, Joel...
Só pode ser obra divina...
Só pode vir dos Céus...
[O piloto assobia uma música por alguns minutos].
[Fim da gravação].
                                  www.nwm.com.br/fms

Um comentário:

  1. Caramba, Fe, super intricado o conto, fiquei imaginando onde iria parar tudo isso e quem era o Joel, afinal de contas... O final foi surpreendente, e nao sei pq, lembrou-me um pouco da série Lost, será? To doida? Chama o pai que a mae tá doida (ou nesse caso, o piloto), haha!!!
    O Marcus tem muito talento, uma vez mais, deixo meus parabéns, arrasou em mais uma, o desfecho foi completamente inesperado, adorei!!!!

    Beijao enorme e bom final de semana, amigao!!!!

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