terça-feira, 5 de julho de 2011

DO LIVRO CONTANDO HISTÓRIAS... O VAQUEIRO CHICO

                          O Vaqueiro Chico


Estatura mediana, aproximadamente trinta anos, moreno queimado pela lida diária sob o sol, ostentava no rosto magro, um bigodinho “a La Charles Chaplin”, apareceu pelas bandas de Pará de Minas vindo do norte de Minas, bem na divisa com a Bahia, como ele mesmo dizia.
Esse era o vaqueiro Chico. Contava ele, que por lá, apaixonou-se por uma moça de “famia remidiada” que não aceitava o namoro, por ser ele moço pobre.
A moça engravidou e ele pegou “mão dela” e pôs o pé no mundo sem trouxa ou matula, não por medo ou cisma, mas para se evitar uma “desgraceira”.
Sabia bem o futuro que era reservado às moças que se engravidavam sem terem se casado.
Estavam desonradas e eram na maioria das vezes colocadas no olho da rua e o destino delas era invariavelmente os prostíbulos de Vitória da Conquista ou Ilhéus.
Sua velha “mainha” lhe ensinara que um tal de Padre Germano havia dito que “há apenas dois lugares em que a mulher não faz falta nenhuma, no prostíbulo e no convento, pois ambos os locais lhes endurece o coração”.
Não sabia quem era esse tal de Padre Germano, mas acreditava piamente no que ela lhe dizia.
Fez o que achava certo e foi assim que ele chegou a Pará de Minas.
Quando o conheci, ele já estava na região há quatro anos.
Somente trabalhava em fazendas, na lida com o gado, tinha pavor de ir à cidade.
Sua expressão era mansa, desligada, fala macia com sotaque forte e cantado, característica daquela região das gerais que se confunde com a Bahia.
O olhar era vivo, esperto, mas os gestos eram demorados e as atitudes tranqüilas.
Tinha um não sei o quê, de balanço ao caminhar, como quem custa levar o corpo. Ler sabia pouco, o suficiente para o beabá e assinar o nome, mas tinha uma facilidade enorme em aprender tudo o que estava ligado ao manejo do gado.
Foi assim que aprendeu enquanto trabalhava comigo o processo de inseminação artificial, casqueamento e mochação.
Diariamente, às 5 horas da manhã, da casa sede eu o ouvia tanger o gado:

Ê cou ... Vaca
Ê cou ... Ê cou ...
Vem Carina,
Vem Cachoeira
Ê cou ... Ê cou ...

E assim chamava uma por uma e elas iam chegando ao curral mansamente.
Sua precisão no laço era espantosa, rodando-o uma, duas, três vezes sobre a cabeça e lá se ia o laço certeiro.
Bom no tiro também pelo que pude perceber certa vez quando exercitava com uma “20” e a ofereci para experimentá-la.
Disse não gostar de armas e que não tinha prática, coisa que não acreditei após ele acertar consecutivamente três vezes o alvo a 70 metros. Não contestei, só botei nele o meu olhar ressabiado.
Um dia, após já estar há três anos trabalhando comigo, havíamos terminado de fazer um parto dificílimo e demorado de uma vaca cujo bezerro estava atravessado; estávamos descansando enquanto observávamos os dois belos animais.
Ele sentado de cócoras sobre os calcanhares como era de seu costume, puxou a faca de ponta fina, com cabo de chifre, esgaravatou as unhas sujas.
Tirou do bolso um pedaço de fumo goiano, picou-o bem picadinho, fez um cigarro com a palha de milho, acendeu-o com binga cor de ouro velho, que segundo ele, herdou do pai, e se pôs a fumar com prazer.
E aí me contou a história de uma família que morava em sua região.
Contou que a um quarto de léguas de sua casa, em terras mineiras, mais um “tiquinho” para o lado baiano, vivia em um sítio uma família muito misteriosa.
Pai, mãe, uma moça e dois rapazes.
A idade dos pais ele não sabia precisar, mas os rapazes pareciam ter 24/25 anos e a mocinha uns 17 anos.
Não tinham amigos, não visitavam ninguém e não recebiam também.
Visitas eram despachadas ali mesmo, da porteira. Iam ao arraial somente para ir à venda comprar os poucos suplementos necessários: café, sal, rapadura, arroz, fumo e uma manta de carne seca.
Feijão de corda e milho não, porque o terreninho teimava em dar um pouco para o gasto, apesar da seca que é presença constante naquela região.
Também possuíam duas dúzias de galinhas poedeiras, cinco cabras leiteiras, seis ou sete porquinhos soltos na manga e três soberbos cavalos.
A casinha era de pau a pique como a maioria da região.
Além de não praticarem a política da boa vizinhança, coisa incomum ao sertanejo, o que mais intrigava a todos da região era que de vez em quando, o pai e os dois filhos montavam os seus cavalos e cada um com um rifle luzidio de tão limpo às costas partiam com rumo ignorado.
Ficavam 20 a 30 dias fora de casa.
Não tardou o zumzum começou a correr.
Dizia-se tratar de pistoleiros que agiam a mando de fazendeiros e figurões em toda Bahia, Sergipe e Pernambuco.
Do lado de cá, nas Gerais estariam a salvo, pois levavam vida pacata.
A verdade mesmo ninguém sabia, prova concreta muito menos. O certo é que eram extremamente misteriosos.
O povo já se acostumava com o desaparecimento ocasional dos três homens e a vida corria normal, mas certa feita a mocinha na ausência demorada do pai e irmãos, teve que ir à cidade adquirir mantimentos necessários. Um pé lá, outro cá, foi o que disse a mãe.
Foi ligeira como um corisco, mas não foi suficientemente ligeira para desviar seu olhar dos olhos do rapaz que atendia ao balcão da venda. Amor fulminante, instantâneo.
Falaram-se timidamente, tempo suficiente para saberem que não podiam mais ficar sem se verem novamente.
E começaram a se encontrar às escondidas, pois o amor supera o medo e torna os amantes ousados. Não tardou e o amor carnal aconteceu ali mesmo, em meio ao canavial.
As regras da moça faltaram e tiveram que fugir e nunca mais dar notícias.
Sumiram no mundo para nunca mais voltarem àquele lugar. Foram procurados pela família da moça em toda a região, dizem que foram até Petrolina no encalço deles e nada.
Contou-me o Chico que depois veio, a saber, que a família era proprietária de terras no sul da Bahia, lá para os lados de Itabuna, coisa para mais de 5.000 pés de cacau e que o dinheiro deles era sujo e maldito, fruto mesmo de pistolagem e roubo.
Acabou de contar a história, respirou profundamente, levantou-se e saiu em direção à sua casa, pois a mulher e os filhos acenavam chamando-o para o almoço. Nada lhe perguntei, mas fiquei com a sensação que aquela era a história verdadeira de sua vida.
Ficou no meu sítio por mais quatro anos, até o encerramento de minhas atividades agropecuárias.
Foi trabalhar em outra propriedade por indicação minha.
Dez anos já se passaram, perdi o contato com ele e sua família, mas espero que estejam bem.
Bom sujeito o Vaqueiro Chico!

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