sexta-feira, 1 de julho de 2011

LIVRO: CONTANDO HISTÓRIAS... O MEDO

                                                   O Medo



Desenho de Fernanda Ferreira (2004)


 “Num tenho medo de home e nem de bicho. Prá inspantá os mar avisado tenho a 28 carregadinha inté na boca e o cartu­cho é 3T.
Pego os boi no laço e se perciso fô, no braço tamém, mas quando chega a boca da noite e óio prás bandas da mata e se vejo uma luzinha alumiano, sobe aquele arrepio no cocuruto da cacunda.
Pru via das durda pego a 28 numa mão e um terço ben­zido pelo Padre Libério na outra, prá mode me agaranti”.
Assim me dizia um ex-encarregado da minha granja lá em Braz Correia, povoado de Pará de Minas.
Entre uma pitadinha e outra em seu cigarrinho de palha e uma cusparada no chão, contava “causos” da famosa luzinha que aparecia e assustava as pessoas e animais da região.
Contava e jurava que ele e sua mulher, certa feita tinha tomado uma carreira quando toparam com ela, lá “pra riba” pras bandas do Povoado de Meireles.
A história da luz que aparecia era contada por muitos, não só por ele.
Contava-se que ela ziguezagueava próxima às pessoas e animais.
Não fazia nenhum mal a ninguém, só assustava a todos com sua aparição.
Aliás, essa é uma história bem antiga, do tempo em que eu e o meu irmão Ernando, eu com meus 9 anos e ele com 8 anos, freqüentávamos a fazenda do meu avô materno José Lourenço, em Meireles.
Nunca a vimos, mas como a temíamos.
Naquela época, existia também entre o Povoado de Meireles e o de Braz Correa, na beira da estrada, uma enorme pedra branca que diziam “assobrada”.
Os cavalos muitas vezes refugavam em passar por ela e empacavam.
O cavaleiro tinha que se munir de coragem, descer do animal e puxá-lo até mais adiante, além da pedra.
Histórias assim são várias, daria para um livro. Vale a pena registrar uma que se passou com meu pai, por volta de 1949, ele então, com seus belos 19 anos.
O cemitério de Pará de Minas, era onde hoje é a Creche Professor Geraldo Martins e a Capela Nosso Senhor dos Passos, logo ali atrás da Policlínica Nossa Senhora da Piedade, no centro da cidade.
Meu pai, além de trabalhar o dia inteiro, à noite ia “passar filme” no Cine Vitória, então recém inaugurado.
Sem a tecnologia atual, os filmes ficavam em enormes rolos de fita que quando chegavam ao final tinham que ser trocados. Gastava duas pessoas para operar a geringonça, mas sigamos a história.
A sessão de cinema terminava por volta das 21 horas (o povo se recolhia e madrugava cedo).
No retorno à sua casa, necessariamente passava pela porta do cemitério.
A iluminação pública era precária existia um poste aqui outro acolá. E aquela luzinha lusco fusco, fraquinha mesmo.
Na porta do cemitério havia uma assim.
Meu pai passou por lá e cumprimentou o “Seu Geraldo”, como costumeiramente o fazia e seguiu o seu trajeto virando como sempre no canto do muro do cemitério.
De repente, aquela sensação ruim, aquele arrepio percorrendo todo o corpo e a certeza: O Geraldo morreu!!! Fui ao seu enterro ontem à tarde!
Afirma meu pai que conseguiu juntar forças para fazer meia volta e constatar que não havia ninguém na porta do cemitério.
Chegou a sua casa em menos de um minuto.
Jura ele até hoje que viu o “Seu Geraldo” naquela noite.
Outra história que ele conta, e essa até certo ponto engraçada, é a do Laurindo Coveiro.
Naquele dia, o Laurindo resolveu ir mais cedo para o cemitério adiantar o serviço e abrir algumas sepulturas e por isso madrugou.
Quem trabalha pesado sente muita fome e quando o Dino Padeiro passou ainda cedo para as primeiras entregas, gritou o Laurindo lá de dentro do cemitério:
- Ô padeiro, me vê um pão de 500 reis.
O cesto foi parar no chão, voou pães por todos os lados e o Dino Padeiro disparou rua abaixo, rumo à padaria, no maior desespero.
Nunca mais foi bom dos nervos.
Histórias de Lobisomem, Mula sem cabeça, Caipora, Iara e Saci-Pererê povoaram o nosso imaginário.
O Saci-Pererê era uma espécie de duende que vivia a noite. Negrinho brincalhão de uma perna só, carapuça vermelha e cachimbo sempre aceso na boca, que se divertia assustando as pessoas e os animais. Tudo que se encontrava revirado da noite para o dia na fazenda de meu avô e nas demais da vizinhança era atribuído a ele, o Saci.
Muitos colocavam pedaços de fumo nos galhos das árvores para afastar as diabruras.
O Lobisomem era um homem que por uma maldição, nas noites de lua cheia, transformava em metade homem, metade lobo.
A Iara era uma espécie de sereia, deusa das águas, habitava os rios, cachoeiras e cursos d’água. Enfeitiçava os homens com o seu canto e levava-os para o fundo do rio. Jamais íamos nadar no riacho sozinhos, o zeloso avô não permitia.
Em Mula sem cabeça se transformavam as mulheres que tinham relações sexuais com padres. Cavalgavam desesperadas nas noites de quinta para sexta-feira, destruindo tudo que encontrassem pelo caminho.
O Caipora era um caboclinho encantado com rastro redondo e só um olho no meio da testa.
Vivia na floresta e era protetor dos bichos e da flora. Tinha o poder de ressuscitar os animais mortos pelos caçadores que temiam encontrá-lo, pois diziam que se isso ocorresse teriam azar por toda a vida.
Meus finados tios maternos Orlando Mauricio, Olavo dos Santos e companheiros, caçadores inveterados temiam encontrá-lo.
Hoje na época da internet, da comunicação imediata, da interatividade, nossos filhos e netos devem dar boas risadas de nossos medos e dessas histórias.
Devem pensar o quanto fomos tolos em acreditarmos nessas coisas.
Ao contrário deles, fico a pensar o quanto fomos felizes.
O nosso medo era imaginário. O deles hoje é real.
Vivem trancafiados em condomínios de luxo, ou em casas e em nome da segurança se isolam cada vez mais.
Tem medo da violência do trânsito, dos marginais que os abordam nas ruas para roubar a bicicleta ou o tênis de marca.
Medo da violência dentro da escola, medo da polícia, medo do bandido, medo de bala perdida.
Crescerão e constituirão família sob o estigma do medo.
É... Com certeza fomos mais felizes com nossos medos. Medo de luzes, fantasmas, Saci-Pererê...

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