quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

CADA UM NO SEU LUGAR COM O QUE MERECE- FLÁVIO MARCUS DA SILVA(FOTO)






24 - Cada um no seu lugar com o que merece




- Hoje vamos conversar com o Sr. Samuel Almeida, funcionário responsável pelo recrutamento de professores na cidade. Ele vai nos falar um pouco sobre como acontece esse recrutamento e sobre como se dá o processo de seleção de professores.
[Bruno olha para o seu entrevistado e sorri]: - Boa noite Samuel. É um prazer tê-lo conosco esta noite. [Samuel balança a cabeça, mantendo-se sério]. [Bruno continua]:
- Vou começar com uma pergunta básica: Como vocês recrutam os professores para as escolas municipais da cidade?
- Bem, o ônibus do recrutamento circula por toda a cidade, de manhã e à tarde, anunciandopelo auto-falante as contratações imediatas: quase sempre, professores de todas as áreas,para trabalhar na maioria das escolas, recebendo dois salários mínimos mensais por trinta aulas semanais.
- E é fácil encher o ônibus?
- Não. Às vezes circulamos durante meses sem encontrar professores de Biologia, Física,Química e Matemática. De História, Geografia, Português e Inglês, geralmente com um mês de procura a gente encontra uns três ou quatro para cada disciplina, e a Prefeitura organiza um rodízio entre eles, em duas ou três escolas, com uma carga horária maior para cada um,resolvendo o problema. Mas isso é só até eles desistirem da sala de aula e a gente ter que correr atrás de mais professores pelas ruas da cidade. É só uma questão de tempo.
- Mas por que vocês não anunciam as contratações nos jornais locais ou nas rádios?
- Porque ninguém aparece. A gente precisa circular pela cidade de ônibus, que é pago pelos pais dos alunos, e ainda oferecer um lanche aos candidatos lá dentro [também pago pelos pais], para aparecer alguém.
- E quem pode se candidatar?
- Qualquer pessoa.
- Qualquer um? Não precisa ser formado?
- Formado em quê?
- Ora, em algum curso superior de Licenciatura.
[risos e mais risos, que logo viram gargalhadas, até o entrevistado suspirar, recuperando fôlego]: - Em algum curso de Licenciatura? Essa foi boa. Onde? Quem estuda para ser professor hoje em dia? Em que lugar o senhor vive? Nas nuvens?
- Mas quem leciona?!
- Para o senhor ter uma idéia de quem os alunos das escolas municipais têm como professores, eu vou citar só alguns exemplos: ontem mesmo, quando desembarcamos um lote de dez candidatos no prédio da Secretaria de Educação, fiquei sabendo que o Januário, açougueiro, com Ensino Médio incompleto, foi contratado para dar aulas de Biologia ànoite. A Jandira, que nem concluiu o Técnico em Contabilidade, virou professora de Matemática da noite para o dia. O Epaminondas, só porque disse adorar ler gibis, foi contratado como professor de Português, sem nunca ter concluído o Ensino Fundamental!
Para dar aulas de História, qualquer um serve: os entrevistadores nem querem saber se o candidato gosta de ler [nem mesmo se SABE ler], se tem algum conhecimento histórico,etc.; vão logo perguntando [para ficarem livres]: “Quer dar aula de História?”. E de Geografia? Meu primo Juca, que foi vendedor de sapato e conhece várias regiões do Brasil,quando resolveu largar o ramo do comércio, foi contratado para dar aulas de Geografia no Ensino Médio. E olha que ele nem concluiu o Ensino Fundamental!
- Mas vocês não encontram ninguém com curso superior, nem que seja em outras
profissões, para lecionar?
- De jeito nenhum! Foi-se o tempo que engenheiro dava aula de Matemática e advogado de História! Acabou. E eu conheço um gari semi-analfabeto que recebeu uma proposta da Secretaria de Educação para ganhar meio salário a mais para lecionar Física numa escola e recusou na hora. Ele sabia do perigo que correria. O tio dele, ex-presidiário, especialista em refinar cocaína, que havia concluído o Ensino Fundamental no presídio, foi contratado para dar aulas de Química e acabou sendo assassinado por um aluno esquizofrênico, que achava que o coitado do professor era Lúcifer em pessoa.
- E Filosofia? Quem dá aula de Filosofia?
- [risos]. De que país o senhor é? Filosofia? Acabou Filosofia. Não existe isso mais na escolas, nem Sociologia, nem Redação e nem Literatura.
- Mas como é possível?
- Não entendi.
- Os alunos não estudam Literatura?
- Meu senhor, 80% dos professores são semi-analfabetos. Eles não conhecem nada de Literatura, nem o mínimo necessário para enrolar os alunos, como fazem nas outras disciplinas [com base nas suas experiências de vida]. Literatura é coisa de gente rica, de professor de escola particular da capital – e olhe lá..., pois na capital, os colégios que não pagam salários milionários aos professores ficam a ver navios.
- E professor de Inglês?
- Qualquer pessoa que tenha passado uma temporada em um país de língua inglesa, que seja uma semana, está apta a lecionar inglês. A minha tia, por exemplo [que só conseguiu concluir na vida um curso de corte e costura por correspondência], lavou pratos durante dois meses no Canadá e, quando voltou, foi contratada imediatamente para dar quarenta aulas semanais de inglês em uma escola da cidade. Pobrezinha... Numa noite, quando ela
tentava explicar uma matéria qualquer, os alunos faziam tanta bagunça, gritavam tanto [inclusive ameaçando-a de morte], que ela resolveu fingir um desmaio e desabou no chão.
Lá do fundo, um aluno gritou: “Enfia o dedo no cú dela que ela acorda!”. [risos]. Depois disso, ela nunca mais entrou numa sala de aula, coitada.
- Mas por que as autoridades públicas não tomam providências para melhorar essa situação?
- Melhorar para quê? A maioria do povo tem é que ser dirigida pela minoria. Filho de rico é que tem que estudar em escola boa, para virar engenheiro, advogado, médico, administrador, contador, executivo, etc. Pobre não precisa nem aprender a ler direito. Pobretem é que ser passivo, aceitar as explicações dadas por aqueles que estão no poder, sem questionar, refletir ou criticar. É por isso que a Educação está desse jeito. É por isso que
ninguém quer ser professor.
- É difícil de acreditar...
- Mas é a verdade. Pergunte aos meus colegas, que trabalham comigo no recrutamento. E os pais pagam o ônibus e o lanche porque não aguentam os filhos em casa o dia inteiro. Só um ou outro pai consegue juntar muito dinheiro e mandar seus filhos para a capital, onde ainda existem algumas [poucas] escolas boas, particulares, com mensalidades que giram em torno
de R$3.000,00. Só ali é possível encontrar professor formado em faculdade, às vezes até com mestrado e doutorado, recebendo até R$10.000,00 por mês, mas isso é uma raridade.
Nas escolas públicas de nível básico, a situação é a que eu acabo de descrever para o senhor...
- Estou bestializado! Como é que pode?... [Bruno olha para o seu notebook e levanta as sobrancelhas, surpreso]: Vejo que acabo de receber um e-mail de Dona Jaciara Menezes Torres e Albuquerque, que está em sua mansão acompanhando a entrevista. Ela diz o seguinte: “Meu caro Bruno, gostaria de aproveitar este espaço para parabenizar ao prefeito e ao seu secretário de Educação pelo excelente trabalho realizado no recrutamento dos professores para as escolas municipais da nossa cidade. Fico muito feliz em perceber que no nosso município, apesar de algumas vozes discordantes, ainda vigora, para o bem da harmonia social, a filosofia do ‘Cada um no seu lugar com o que merece’. Um abraço a todos os ouvintes”.
P.S.: Esta crônica não é uma crítica à Secretaria Municipal de Educação de Pará de Minas, que tem se empenhado muito em garantir a qualidade do Ensino em nossa cidade, apesar da tradição histórica, de raízes
profundas, de desvalorização do professor e da Educação no Brasil.


QUEM É MARCUS FLÁVIO DA SILVA



Nascido em Pará de Minas- MG em 1975. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e doutorado pela Universidade federal de Minas Gerais (2002) com estágio (Doutorado- sanduíche/CAPES) na Universidade de Lisboa- Portugal (2002). Atualmente é Vice- diretor da Faculdade de Pará de Minas- FAPAM-(MG) onde já exerceu os cargos de Coordenador do Curso de História, coordenador do NUPE- Núcleo de Pesquisa, e foi professor nos cursos de História e Administração. Atualmente leciona nos cursos de Direito e Pedagogia. É autor do livro SUBSISTENCIA E PODER: a política do abastecimento alimentar nas Minas Setecentistas (Editora UFMG -2008) e de artigos publicados em periódicos e livros de História. Um de seus trabalhos foi publicado no livro HISTÓRIA DE MINAS GERAIS- As Minas Setecentistas (Editora Autentica 2007) obra vencedora do PREMIO JABUTI
2008 na categoria Ciências Humanas. Atualmente exerce também a função de Pesquisador Institucional da Faculdade de Pará de Minas junto ao Ministério da Educação, sendo responsável pelo acompanhamento dos processos e renovação de reconhecimento dos cursos de graduação da IES. Em 2009 foi eleito para a Academia de Letras de Pará de Minas.
www.nwm.com.br/fms

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