quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

"MUITO ESQUISITO" - FLAVIO MARCUS DA SILVA (FOTO)


20 - Muito esquisito


A vizinhança não gostava dele. Achava-o muito esquisito. Era um jovem calado, de olhar triste, que andava pelas ruas do bairro quase sempre de mãos dadas com a filha de seis anos[uma cópia em miniatura do pai, de quem herdara, além dos traços tristes e o olhar perdido, a timidez e o medo das pessoas].
A esposa era uma professora primária. Ele, um escritor. Mas ninguém conhecia seus livros– o que não era estranho naquela cidade, onde ler, para a maioria dos habitantes, era considerado uma perda de tempo. Porém, mesmo se houvesse ali uma cultura literária mais refinada, que não se limitasse apenas à leitura esporádica de alguns livros de auto-ajuda, ninguém seria capaz de descobrir as obras daquele misterioso escritor. Alguns vizinhos chegaram até a vasculhar a sua caixa de correio, descobriram seu nome completo e pesquisaram na internet, mas não encontraram nada sobre a sua ocupação.
O que ninguém desconfiava era que aquele jovem desagradável havia se tornado, nos últimos anos, um famoso escritor de livros de terror, que ele publicava em vários países com o pseudônimo de Daniel Zafón. Escrevia originalmente em inglês, mas havia traduções de seus trabalhos em quase todas as línguas do mundo, inclusive em português. Ganhava rios de dinheiro [algo raro entre escritores], mas vivia modestamente, numa pequena casa alugada, em um bairro tranquilo de classe média. Tinha um carro popular bem conservado, que só saía da garagem nos finais de semana, quando ia com a mulher e a filha passear pelos pequenos vilarejos das redondezas, para pescar, acampar e curtir a natureza. Doava grande parte da sua renda para instituições de caridade, que cuidavam de crianças e idosos, mas investia também em livros, sobretudo em histórias de terror [a maioria importada da Europa], e na educação da filha, que, se quisesse, quando completasse 18 anos, poderia estudar em qualquer universidade do mundo.
Na casa ao lado vivia um casal de aposentados e seu filho solteiro. O rapaz tinha a mesma idade do escritor, 32 anos, mas não podia ser mais diferente. A começar pelo tamanho.
Enquanto o escritor era magro, pequeno e de aspecto doentio, o vizinho era um armário de músculos, conquistados e mantidos com várias horas de academia por semana e, para minimizar os esforços e o tempo nos aparelhos, com algumas injeções de hormônio bovino, aplicadas, regularmente, por um amigo veterinário. Trabalhava como entregador de móveis numa loja e vendia cigarros de maconha de vez em quando; ganhava uma miséria, mas tinha um carro importado e um guarda-roupa entupido de marcas famosas e caras. Seu dinheiro era todo queimado em malhação, injeções, roupas, tênis, parcelas do carro financiado, mulheres e, é claro, nas latinhas de cerveja dos finais de semana. O resto da despesa era pago pelos pais, que o tratavam como uma criancinha mimada, aceitando seus caprichos e violências como algo normal: “Coisas de homem” – costumava dizer a mãe, sempre que recebia um soco ou um pontapé do filhinho querido.
Todas as tardes, quando chegava do trabalho, o Bad Boy colocava uma camiseta que valorizasse bem seus músculos tatuados, uma bermuda e um tênis, e ia passear na avenida com Stálin, seu cão Pit Bull, o terror da vizinhança. O animal era quase uma miniatura do dono, cheio de músculos, com dentes enormes, e andava pelos passeios sem focinheira, latindo para todo mundo.
Quando o escritor e sua filha voltavam da escola, quase sempre se encontravam com o cão e seu dono a caminho do desfile exibicionista na avenida. Pai e filha mudavam de passeio, mas mesmo assim o animal latia ferozmente para eles, enquanto o dono, embora segurasse firme a guia, fazia movimentos com o braço como se ameaçasse soltar o animal [e um leve sorriso de desprezo se desenhava em seus lábios]. A menina tremia de medo, mas o pai não dizia nada. Segurava-a firme em seus braços e seguia seu caminho sem olhar para trás.
Numa sexta-feira à tarde, a cena se repetiu; só que no momento em que o rapaz sorria e ameaçava soltar o cão no escritor e sua filha, uma dor muito forte no seu braço fez com que ele largasse a guia. Sentindo-se livre, Stálin avançou sobre a menina, sedento de sangue.
Tudo aconteceu em apenas alguns segundos, mas vou descrever a cena em câmera lenta, de forma que o leitor possa aproveitar melhor os detalhes.
Como eu dizia, Stálin avançou sobre a pobre criança com a rapidez de um touro que, enlouquecido, salta de seu cubículo em direção ao matador no meio da arena. Seu alvo era o frágil pescoço da menina, que ele queria morder com toda a sua força e estraçalhá-lo, até transformá-lo numa pasta de carne, pele e cartilagem moídas.
Enquanto corria, contraindo seus músculos num tiro de alta potência, Stálin mantinha seus olhos focados naquele pescoço que, por instinto, ele sabia ser o ponto vital da sua presa.
A menina fechou os olhos, aterrorizada.
Felizmente, ela não sentiu nenhuma dor.
Ao abrir os olhos novamente, segundos depois, num movimento involuntário das pálpebras, tudo já tinha acabado.
Dois corpos jaziam sobre o passeio: o do cão e o do dono do cão.
Como eu disse há pouco, tudo aconteceu em questão de segundos. O cão enraivecido saltou como um touro sobre a menina, mas antes de conseguir fechar sua poderosa mandíbula em torno do seu alvo, duas mãos a seguraram no ar com a rapidez de um relâmpago e ergueram o animal, que se debatia ferozmente, sem conseguir se soltar. As mãos daquele pai franzino abriram a mandíbula de Stálin até seus ossos e cartilagens se quebrarem, transformando a cabeça do animal numa planta carnívora gigante, com suas pétalas cor de sangue escancaradas, esperando a chegada de um besouro ou de um pássaro. Um som borbulhante, como um gargarejo, saía do buraco onde antes estava a boca do animal, cujos membros continuavam se debatendo violentamente no ar. Foi quando o escritor começou a morder a barriga de Stálin, puxando para fora, com os dentes, fígado, rins, estômago, tripas e outras vísceras. Em seguida [quase ao mesmo tempo], abriu o peito do animal e arrancou com as mãos coração e pulmões, puxando também traquéia, esôfago, língua e outras partes difíceis de identificar.
Os restos mortais de Stálin, espalhados pelo passeio, foram então pisoteados pelo escritor, que, sujo de sangue dos pés à cabeça, mais parecia um personagem possuído pelo demônio em uma de suas histórias macabras.
Logo à frente, o dono do cão morria de enfarte assistindo à cena.
A menina nada sofreu.
O escritor também nada sofreu.
Mas a vizinhança continuou não gostando dele...
Realmente, ele era muito esquisito.


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