quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O SOAR DA TROMBETA- FLAVIO MARCUS DA SILVA (FOTO)


23 - O soar da Trombeta
A sessão da Câmara que votaria o aumento salarial dos deputados já estava quase lotada.
Enfiados em seus ternos caros e engomados, os representantes do povo desfilavam pelos corredores do Congresso, acompanhados de seus assessores, que também esperavam ansiosos o resultado da votação, já que receberiam, com o aumento de seus chefes, um rechonchudo quinhão.
Ao final da sessão, marcada por aplausos efusivos e nenhuma voz discordante, uma turba de deputados saiu, sorridente, pela porta principal, em direção ao estacionamento. Porém,algo muito estranho os impediu de ultrapassar o final da rampa de granito: uma força magnética poderosa [ou algo parecido], que não os deixava prosseguir seu caminho de volta à abastança, agora ainda mais farta com o novo aumento salarial.
Os outros deputados e assessores se juntaram aos primeiros e forçaram a passagem, mas nada que fizessem conseguia romper aquela barreira invisível que parecia se erguer sobre todo o prédio, formando uma imensa redoma. Tentaram outros lugares, outros pontos de fuga, mas nada.
Estavam presos.
Do lado de fora, o povo se aglomerava para tentar entender o que estava acontecendo com aqueles homens engravatados e mulheres elegantes parados no final da rampa de acesso aoestacionamento. Uma senhora idosa se aproximou de um deputado e perguntou: “Por que o senhor não sai?”. Ele não respondeu. Tentou mais uma vez dar um passo, mas não conseguiu. “Não posso”, disse ele por fim, olhando nos olhos da velha, desesperado. “Eles não podem sair”, gritou a velha para a multidão, que crescia cada vez mais em torno da redoma invisível.
A noite chegou e os deputados continuavam lá, presos. Redes de TV e rádio se instalaram ao redor do Congresso, registrando tudo. Sindicatos e movimentos sociais de todo o país organizaram caravanas de partidários e simpatizantes para irem à capital testemunhar de perto aquele fato inusitado e surreal: no dia da aprovação do substancioso aumento salarial concedido pelos deputados a eles mesmos, uma força sobrenatural os impedia de sair do local da votação.
“O que você acha que vai acontecer com eles?”, perguntavam os repórteres às pessoas do lado de fora. “Eu acho que isto é um castigo de Deus, e que eles vão ficar lá dentro até apodrecerem”, respondiam alguns mais revoltados, que aos poucos foram se juntando em torno de um líder barbudo, de aspecto desleixado.
Três semanas se passaram.
Os deputados já não se encontravam mais de terno e gravata. Andavam pelo Congresso sem camisa, alguns só de cueca, calcinha e sutiã, descalços e famintos, pois o ar condicionado tinha pifado e a comida acabado. Por mais que eles tentassem desligar ou destruir as câmeras de segurança do interior do prédio, nada as impedia de continuarem registrando todos os seus movimentos, que – por um desses milagres da tecnologia – puderam ser acompanhados em todo o país, em rede nacional. Milhões de pessoas puderam ver, por exemplo, dois deputados disputando um pacote de bolachas importadas, sob o olhar atento de um assessor, que vasculhava o chão à procura de migalhas; uma deputada gorda agredindo a tapas um colega, acusando-o de ter invadido seu gabinete à procura de chocolates e outras guloseimas; a morte de um deputado idoso, que implorava a alguém do lado de fora o seu remédio do coração que, mesmo comprado na farmácia mais próxima, não passava pelo campo de forças invisível.
Nada passava pela barreira. Parentes e amigos dos parlamentares tentaram entregar-lhes comida, bebida e água, mas a redoma jogava tudo para fora novamente, com uma força descomunal.
Seis meses se passaram.
Quinze deputados haviam morrido, dez deles devorados por outros parlamentares, que não agüentaram a fome atroz que os rasgava por dentro, causando dores lancinantes em seus estômagos vazios. Estavam sujos e fediam, pois não tinham água há vários dias. Algunsenlouqueceram: pediram perdão a Deus pelos seus pecados, prometendo que nunca mais roubariam o povo; olhavam para as câmeras de segurança e, aos prantos, imploravam misericórdia, reconhecendo que aquele salário era uma afronta à pobreza da população, uma indecência, uma injustiça sem tamanho.
Do lado de fora, o líder barbudo gritava insultos e era acompanhado por uma multidão de seguidores, que mais parecia um exército infernal pronto para o ataque. No meio do povo, um jovem negro recitava, aos gritos, trechos de antigos e quase esquecidos poemas de Vinicius de Moraes: “Senhor! Tudo é blasfêmia e tudo é lodo. / Vós não vedes, Senhor, não vedes, todo / Esse povo a sofrer? / Deixai por um momento a Igreja Santa / A iniqüidade do pecado é tanta / Que Roma vai morrer!”. A multidão se inflamava e erguia foices, facas, machados, pás e picaretas, dando mostras de querer atravessar a redoma e acabar comaquilo de uma vez por todas. “Escutai, Senhor Deus, a imensa grita / Da humanidade sofredora e aflita / Que morre no pavor! / - Dai-lhe a morte no campo de batalha / Dai-lhe sangue vermelho por mortalha / - Dai-lhe a guerra, Senhor!”.
Mas a redoma não se abriu. Não houve carnificina. O fim chegou lentamente para os deputados.
Só quatro parlamentares sobreviveram. E, por isso, o povo passou a acreditar que eles eram os únicos que realmente tinham a ficha limpa. Os quatro se uniram e organizaram um movimento político no país contra a corrupção, a favor da justiça, da dignidade e da igualdade que, pela primeira vez na história, foi um sucesso e mudou radicalmente a
Política Nacional.
Foi aí que eu acordei.

QUEM É MARCUS FLÁVIO DA SILVA



Nascido em Pará de Minas- MG em 1975. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e doutorado pela Universidade federal de Minas Gerais (2002) com estágio (Doutorado- sanduíche/CAPES) na Universidade de Lisboa- Portugal (2002). Atualmente é Vice- diretor da Faculdade de Pará de Minas- FAPAM-(MG) onde já exerceu os cargos de Coordenador do Curso de História, coordenador do NUPE- Núcleo de Pesquisa, e foi professor nos cursos de História e Administração. Atualmente leciona nos cursos de Direito e Pedagogia. É autor do livro SUBSISTENCIA E PODER: a política do abastecimento alimentar nas Minas Setecentistas (Editora UFMG -2008) e de artigos publicados em periódicos e livros de História. Um de seus trabalhos foi publicado no livro HISTÓRIA DE MINAS GERAIS- As Minas Setecentistas (Editora Autentica 2007) obra vencedora do PREMIO JABUTI
2008 na categoria Ciências Humanas. Atualmente exerce também a função de Pesquisador Institucional da Faculdade de Pará de Minas junto ao Ministério da Educação, sendo responsável pelo acompanhamento dos processos e renovação de reconhecimento dos cursos de graduação da IES. Em 2009 foi eleito para a Academia de Letras de Pará de Minas.
www.nwm.com.br/fms

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