quinta-feira, 1 de dezembro de 2011


19 - Na voz de Amália

A jovem namorada, cansada do tédio de uma relação que, para ela, já tinha ido longe demais, terminou com ele no dia 29 de dezembro, já com as malas prontas para um fim semana na praia com as amigas. Era para ter sido antes, mas ela não conseguia falar, com medo de prejudicar o tratamento que ele seguia contra a depressão [com remédios fortíssimos], desde que tentara se matar cortando os pulsos na banheira da sua casa, numa manhã chuvosa de segunda-feira. Foi encontrado pela faxineira, inconsciente, mergulhado na água quente e completamente tomada pelo vermelho intenso que brotava de seus pulsos abertos. Foi levado às pressas pelo caseiro ao hospital, onde se recuperou, preso a tubos e aparelhos, após uma longa transfusão de sangue. Ela tinha medo de que o término do namoro fosse mergulhá-lo de novo numa espiral de melancolia profunda que o levasse, mais tarde, a uma nova tentativa de suicídio, talvez bem sucedida. Preferiu ir adiando a conversa até não ter mais jeito.
Foi então que, com a consciência pesada pelas inúmeras traições e pressionada pelas amigas, ela decidiu terminar o namoro de uma vez por todas numa quinta-feira à tarde, quatro dias depois do Natal, enquanto tomavam café numa lanchonete do centro histórico da cidade.
Ele era funcionário de uma siderúrgica, onde trabalhava no setor contábil, e morava sozinho numa bela casa de madeira e vidro, no alto de um morro, cercada por uma floresta exuberante e assustadora. A casa era herança dos pais, falecidos em um acidente de avião quando voltavam de Portugal, onde tinham ido visitar alguns parentes. Era jovem, com dupla cidadania, mas nunca tinha saído daquela cidade, embora conhecesse muito sobre o mundo e o ser humano através dos livros, que lia com voracidade e prazer. Era dono de uma biblioteca que, além de relíquias religiosas e místicas, que iam do espiritismo ao candomblé, passando por práticas mágicas indígenas [herança da mãe], possuía uma enorme variedade de clássicos, entre contos, romances e tratados filosóficos, em várias línguas [que ele dominava fluentemente, graças a uma educação de alto nível, recebida em um colégio de padres franceses].
Na primeira vez que visitou a sua casa, a jovem namorada, que nunca tinha lido um livro na vida, ficou espantada com a biblioteca e, ao mesmo tempo, desconfiada, diante da cultura do namorado, que aquela relação dificilmente daria certo. Ela era linda, tinha a pele clara, os olhos azuis; trabalhava como vendedora em uma boutique, só gostava de música sertaneja e tinha como bagagem de leitura apenas o que seus amigos escreviam no Orkut e no Facebook.
Ele não tinha amigos. Era de pouca conversa, não gostava de sair, e sempre que um colega de espírito mais generoso se aproximava dele, era como se um campo de forças os separasse. O namoro com a bela vendedora exigia dele um esforço quase sobre-humano, pois ele tinha que sair de casa, ir a barzinhos, ouvir música sertaneja, conversar
trivialidades e, o pior, aguentar os amigos dela em intermináveis churrascos regados a cerveja nos finais de semana. Ele simplesmente não tinha assunto nessas festas, pois não entendia nada de futebol e carros, e detestava ficar na beira da piscina bebendo e comendo, enquanto o álcool ia subindo às cabeças daqueles jovens, tornando-os ainda mais insuportáveis [eles gritavam, dançavam e posavam para fotos com as latinhas de cerveja nas mãos, levantando-as em direção ao céu, às gargalhadas]. O que ele sentia não era preconceito, pois admirava a alegria e a espontaneidade daquelas pessoas, às vezes até com um pouco de inveja. No fundo, o que ele experimentava era uma sensação de inadequação, um estranhamento que beirava a angústia e, às vezes, o desespero.
Foi em meio a uma crise assim, numa segunda-feira chuvosa, depois de um longo churrasco no domingo [e com meia garrafa de vinho tinto na corrente sanguínea], que ele tentou se matar, após ligar para a namorada dizendo que a amava e que não queria perdê-la de jeito nenhum. Ela gostava dele, do seu jeito doce e olhar perdido, mas se incomodava de vê-lo fazer tanta coisa só para agradá-la, pois sabia que ele detestava sair, ouvir música sertaneja e estar com os amigos dela. O tempo que ele tinha para ler e assistir a filmes de arte, saboreando bons vinhos europeus, ele passava com ela, fazendo o que mais odiava [exceto sexo, que ambos adoravam, mas que, nos últimos tempos, vinha perdendo a energia dos primeiros meses]. Ela, por sua vez, não abria mão do que gostava. Detestava vinho, queijo gorgonzola, filmes franceses, música clássica e não tinha nada para conversar sobre livros, pois na vida só tinha lido um [e, mesmo assim, sem concluí-lo]: “A Ilha Perdida”, de Maria José Dupré.
Não dava para continuar.
O rompimento foi frio, rápido; ela nem quis terminar o suco. Uma praia ensolarada, homens sarados e muita cerveja a esperavam. Ele ficou ali, quieto, saboreando um café com conhaque e pensando na vida que lhe escapava, no tempo que não voltava mais. Trabalhava oito horas por dia numa empresa e numa função que não tinham nada a ver com ele, e, nos últimos dois anos, tinha amado uma mulher que o fazia deixar de lado o que ele mais gostava: livros, filmes e, o mais importante: o sonho de ser escritor.
Levantou-se da mesa com a certeza de que a morte não era a melhor saída, que a vida podia ser diferente, bastava ele querer.
A caminho de casa, ligou o rádio numa estação qualquer, enquanto observava pelo párabrisa do carro uma tempestade que se formava sobre a cidade. A música, um fado muito bonito na voz de Amália Rodrigues, fez com que ele pensasse no país de seus avós, na cidade onde nascera sua mãe e para onde seu pai se exilara, nos anos 80, para fugir da família e dos falsos amigos que o sufocavam no Brasil.
Lisboa. Sempre quis conhecer a velha Lisboa, suas ruas e colinas cheias de história e encanto, seus fados, seus cheiros, suas texturas e cores...
Por que não?
Naquele mesmo dia colocou a casa à venda, pediu demissão do emprego e comprou uma passagem só de ida para Portugal. Levou consigo apenas algumas roupas, três manuscritos esquecidos no fundo de uma gaveta, contendo vinte pequenos contos de terror [que ele escreveu quando tinha 18 anos], e o desejo ardente de fazer a vida valer a pena.
Em Lisboa, alugou um quarto numa pensão barata, próximo à estação de metrô Saldanha, na Avenida Almirante Reis. Comprou um notebook e se pôs a escrever, reservando uma parte do dia para ler e a outra para procurar emprego em algum jornal como cronista, revisor ou tradutor.
Alguns meses depois, suas histórias de terror começaram a ser publicadas em revistas e jornais de Lisboa, Porto e Coimbra, mas ele recebia muito pouco por elas. Foi quando um conhecido da pensão, que havia sido livreiro em Paris por mais de trinta anos, lhe deu os endereços de algumas editoras e revistas em Londres, que eram especializadas em histórias de terror e que, segundo ele, pagariam muito mais pelos seus contos. “Seus textos são muito bons, não devem ficar restritos aos jornais portugueses”. O jovem escritor achou a ideia interessante e começou a escrever em inglês, língua que dominava desde a infância [aos 9 anos, quase sem consultar o dicionário, leu todos os contos do monumental Grimms’Fairy Tales – de onde talvez tenha surgido a sua paixão por bruxas e monstros].
Suas histórias foram muito bem aceitas pelo público inglês, e como eram escritas numa língua universal, correram o mundo com uma velocidade espantosa, causando enorme sensação entre o público e a crítica especializada.
Um ano depois de chegar a Lisboa, uma coletânea de seus contos já tinha sido publicada por uma importante editora inglesa [que vendia milhões de cópias do livro nos quatro cantos do mundo] e sua primeira novela de terror já estava no prelo, sendo aguardada com ansiedade por um público ávido por tramas inteligentes, mistério e muito sangue.
Porém, ele continuou no anonimato, vivendo na mesma pensão da Avenida Almirante Reis, tomando o café da manhã na mesma pastelaria da esquina [onde pedia sempre uma tosta mista com café Sical], almoçando no restaurante da Biblioteca Nacional e jantando um sanduíche de fiambre na Casa das Sandes. Publicava seus textos sob o pseudônimo de Daniel Zafón, e fazia questão de não aparecer [ele até recusou uma entrevista no programa da Oprah Winfrey, que tinha lido um comentário elogioso sobre sua coletânea de contos, feito por ninguém menos que Stephen King, o mestre do macabro].
Num sábado de primavera, passeando pelas livrarias do Chiado, ele conheceu a mulher que em menos de seis meses se tornaria sua esposa, e com quem voltaria para o Brasil, vivendo ao seu lado, muito feliz, por mais de sessenta anos. Ela era angolana e trabalhava como bancária. Não gostava muito de livros nem de filmes, nem trocava uma cerveja por um vinho, mas era generosa, e soube, naquele momento, que ali estava o homem da sua vida e que, por ele, seria capaz de abrir mão de muitas coisas; assim como soube, também, que aquele jovem encantador e de olhar triste era muito humilde e bondoso, com uma enorme capacidade para amar e compartilhar a vida com ela, também abrindo mão de muitos de seus prazeres para satisfazê-la.
Foi assim que se conheceram, num café da Rua Garret, próximo à Praça Luiz de Camões, em Lisboa, onde conversaram por mais de duas horas, ouvindo, ao fundo, os mais belos fados portugueses, na inesquecível voz de Amália.
www.nwm.com.br/fms

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