quinta-feira, 21 de julho de 2011

"MEUS ESCRITOS" (1) FLAVIO MARCUS DA SILVA

                                            1 – Quatro

A jovem dona de casa acorda todos os dias às seis da manhã, abre a janela do quarto e respira fundo quatro vezes o vento fresco que, àquela hora, mesmo no inverno, sopra silencioso e calmo sobre as casas do bairro, trazendo consigo o cheiro agradável do cerrado selvagem que cerca toda a região.Da janela, ela vai direto ao banheiro, contando suas passadas de forma a alcançar a bancada de granito exatamente no quarto passo.Vencida essa etapa, ela começa a escovar os dentes, contando os movimentos da escova de cima pra baixo, de baixo pra cima, para os lados, pra trás e pra frente, bem devagar,terminando a escovação somente quando conclui quatro séries de quarenta e quatro movimentos cada uma (nem mais, nem menos).Depois, quatro bochechos com água;quatro movimentos com a mão direita em quatro partes do rosto, limpando a pele com  um chumaço de algodão embebido em um produto importado, caríssimo; quatro séries de quarenta e quatro exercícios para os músculos da face, para prevenir rugas precoces; quatro séries de quatorze contrações musculares na bunda, para mantê-la durinha e atraente; quatro escovadas no cabelo (em quatro lugares diferentes do couro cabeludo); quatro sorrisos encantadores olhando para o espelho, para aumentar a auto-estima; quatro movimentos cuidadosos com o papel higiênico (dobrado quatro vezes) no cu, para limpá-lo, depois das necessidades feitas... Quatro isso, quatro aquilo...
E ela está agora na cozinha, preparando o seu café, enquanto o marido se arruma para o trabalho.Como está sempre de dieta, ela só usa adoçante: quatro gotas para o café e quatro para a coalhada. Na xícara, quatro giros da colher para um lado e quatro para o outro. Quatro mini-torradas, quatro pequenos pedaços de melão, e está terminado o desjejum Em seguida, ela abre a geladeira e confere se todos os alimentos estão organizados em grupos de quatro. Na parte dos ovos, é preciso sempre deixar um espaço vazio entre cada quarteto: não pode ser diferente (se sobrar ou faltar ovos, ela resolve o problema eliminando os que precisam ser eliminados). Se há só três maçãs, ela coloca uma pêra junto, para formar um grupo de quatro. Se um produto fica isolado e não há como agrupá-lo (por exemplo: um iogurte pode entrar no grupo da coalhada, mas não no da cenoura), ela o joga no lixo. O lixo representa para ela o espaço da desordem, da incoerência, do desvario. As emanações que dali saem têm para ela um significado aterrador: representam o desarranjo da vida: a indisciplina e o desalinho da maioria da população, em completa desarmonia com as forças que ordenam os quatro elementos da natureza: terra, fogo, ar e água. O lixo é o que sobra do seu trabalho de limpeza e organização: é o que escapa à simetria de sua existência metódica e regular, devendo ser eliminado todos os dias às quatro da madrugada. Ela se levanta às 3:55, posiciona-se em frente ao saco cheio de detritos e diz, baixinho, a palavra FORA quatro vezes. Depois, carrega o saco até a rua, contando os passos em séries de quatro (com uma pausa de quatro segundos entre elas), e deixa-o no passeio. Porém, antes de voltar a dormir, ela lava as mãos com sabão, esfregando-as quarenta e quatro vezes, para se purificar. O marido finge que respeita as regras da mulher, para não enfurecê-la e tornar impossível o convívio entre eles. Mas como ele trabalha o dia inteiro (e quando chega em casa à noite fica até tarde no escritório adiantando o serviço para o dia seguinte ou assistindo a vídeos pornográficos), os poucos momentos de contato com a mulher (quando ele tem que se mostrar obediente às suas diretivas) não o incomodam. De quinze em quinze dias, quando se entregam a um rápido intercurso sexual, ele até se diverte com o padrão que ela se obriga a seguir: para cada quatro gemidos, um gritinho (“ai”, “ui”), devendo o número total de gritos ser sempre múltiplo de quatro. Para ele, a única regra é respeitar o padrão de séries rápidas de quatro estocadas, com intervalos de quatro segundos entre elas.
Mas quando ele está só, em casa ou no trabalho, as normas impostas pela mulher são terminantemente desobedecidas.
Uma noite ela o espia pela janela do escritório e descobre que, enquanto assiste a vídeos pornô na frente do computador, ele se masturba com dois dedos, e não com quatro, como ela o ensinou.E não é só isso. Atenta a todos os movimentos do marido (que ela passa a observar escondida), descobre inúmeras outras faltas imperdoáveis, no banheiro, na cozinha, na saída para o trabalho...
Decide, então, realizar um ritual de limpeza dos mais importantes:
No dia do seu aniversário de quatro anos de casamento (numa providencial quarta-feira, dia de Mercúrio), ela termina sua relação com o marido definitivamente dando-lhe quatro tiros no peito, exatamente às quatro da madrugada. Leva o corpo até o banheiro, onde, com um cutelo, pica-o em 44 pedaços; divide tudo em quatro sacos de lixo, que ela deixa serenamente no passeio, com a agradável sensação de missão cumprida. Fecha os olhos e levanta os braços quatro vezes, dando boas vindas ao sol que se ergue por trás dos jatobás, pequis e ipês, trazendo, com seu brilho e calor, a esperança de uma nova vida.
                                     www.nwm.com.br/fms

Um comentário:

  1. Oi Fe!!!!!!!!!!

    Acabei de ler o conto (é do Flávio Marcus??) e ao final, pensei e imaginei como ficaria toda essa trama num romance, já pensou que loucura??? De 4 em 4, que Toc, embora engracado, trágico!!! E o final do marido... ele mereceu ser picado em 44 pedacos??? claro que sim!!! hahahaha (que malvada), mas se nao tivesse esse final inusitado eu nao o teria imaginado para um romance, hehe Adorei!!!!!!!!
    Parabéns pra voces!!
    Beijo grande!!

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