quarta-feira, 5 de outubro de 2011

CAFÉ COM INGLESES. FLAVIO MARCUS DA SILVA (FOTO)



CAFÉ COM INGLESES.

Meu nome é Lucas, tenho 28 anos e sou escritor. Vivo de criar e solucionar enigmas, que são publicados em revistas e sites especializados no mundo inteiro. Trabalho em casa ou em qualquer outro lugar, desde que haja por perto uma boa máquina de café expresso – como a que eu tenho na minha cozinha: uma obra-prima italiana que, se honrada com os grãos que ela merece, faz um café maravilhoso, com espuma espessa e aroma intenso [que entra pelo nariz e atinge a alma em menos de dois segundos; e a alma, em júbilo, agradece, pressentindo, através de suas conexões mágicas com os sentidos do corpo, o equilíbrio perfeito entre o ácido e o amargo, entre a vontade de alçar vôo até as portas do Céu e a de ficar naquele corpo que, embora em putrefação, desfruta todos os dias aquele líquido misterioso e demoníaco].
Não tenho emprego com carteira assinada e, como eu disse, não preciso bater ponto em lugar nenhum, louvado seja!
Trabalhei uma vez numa empresa que me prendia num cubículo de dois metros quadrados por mais de oito horas por dia, e me fazia digitar milhares de cartas e ofícios desanimadores [que os chefes só assinavam e mandavam despachar, sem nem olhar para mim]. E eu pensava: “Será que o meu futuro é um dia me sentar numa destas cadeiras de couro, dar ordens, fiscalizar, assinar papéis e ganhar dinheiro pra pagar o apartamento de luxo, o carro importado, as plásticas da esposa, as férias no resort e os colégios e faculdades caríssimos dos filhos?”.
Um dia eu tive a certeza: não era aquilo que eu queria para mim. Por isso, depois de dois anos sendo explorado e humilhado por aqueles magnatas do carreirismo [que só pensavam em competitividade e estratégias disto e daquilo], resolvi pedir demissão e viajar pelo interior, para pensar um pouco sobre o que fazer da vida.
Eu era fascinado por histórias de detetive. Quando entrei no ônibus para Diamantina, numa fria manhã de julho, na mochila eu levava oito livros dos grandes mestres do romance de enigma, todos em inglês, língua que eu dominava desde pequeno, porque meus pais, embora pobres, sempre se preocuparam com a minha educação. E assim que eu arrumei o meu primeiro emprego, matriculei-me também em um bom curso de francês, o que me deu acesso a um outro universo cultural, sobretudo no campo da literatura e do cinema. E sozinho em casa, com a ajuda de apostilas e dicionários, aprendi também o espanhol, porque eu queria ler Marsé, Rulfo e Vázquez Montalbán no original [E como é bom ler os grandes mestres no original!].
No dia seguinte, sentado na mesa de um restaurante, com vista para o belo centro histórico de Diamantina, escrevi, em inglês, o meu primeiro conto que seria publicado e me renderia algum dinheiro [nada espetacular: somente alguns dólares, que me permitiram comprar os últimos lançamentos internacionais e me inscrever num clube inglês para escritores iniciantes].
Quando eu trabalhava na firma de advogados, trancafiado lá dentro como numa jaula, minha criatividade recebia poucos estímulos. O que eu escrevia todos os dias, nas intermináveis horas de expediente, era uma simples reprodução de modelos padronizados, restando pouco tempo para o que eu realmente gostava: ler, criar e escrever histórias de mistério. À noite, quando eu chegava em casa, ia direto para o computador, onde quase sempre encontrava um conto pela metade, e escrevia até de madrugada. Outras noites eu me dedicava à leitura ou ao estudo do inglês, francês ou espanhol, sem saber aonde aquilo me levaria. Uma vez cheguei até a pensar que escrever contos de mistério e estudar línguas estrangeiras era uma grande bobagem. Acabei me matriculando numa faculdade de Direito, onde estudei por quase um ano, à noite, ficando esse tempo todo sem fazer o que realmente me elevava o espírito. Perdi a capacidade de inventar, de criar, tornando-me um robô, um técnico das leis, pois nessa faculdade o ensino era péssimo, exigindo dos alunos tão somente a simples reprodução mecânica de informações: um desperdício da inteligência humana.
Desisti da faculdade no dia em que fui punido por interpretar um dispositivo legal de forma contrária à interpretação do professor. Aquilo para mim foi demais. Na noite seguinte eu já estava de novo às voltas com meus livros, lendo e escrevendo.
Mas voltemos a Diamantina. Ali estava eu, sem trabalho, só com o dinheiro do meu acerto e das poucas economias que eu havia feito durante três ou quatro anos de sofrimento.
Naquela mesa afastada do restaurante, de frente para uma janela de vidro que se abria para um belo conjunto de sobrados do século XVIII, escrevi um conto assustador, sobre um livro misterioso que levava à morte a maioria dos seus leitores [fora isso, nada a ver com “O Nome da Rosa”].
No dia seguinte, enviei o conto a um famoso site inglês, o mystery.com, que o aceitou sem nenhuma ressalva. Recebi a notícia em casa, por e-mail, algumas semanas depois, no sábado à noite. Minha alegria foi tanta que resolvi abrir um vinho tinto francês [que me havia custado uma pequena fortuna], guardado a sete chaves para o dia da minha aposentadoria. Não resisti. Liguei a tv no programa Bouillon de Culture, tirei a roupa e passei duas horas no sofá, feliz da vida, assistindo a uma entrevista com a escritora Amelie Nothomb, enquanto baixava o vinho e comia queijo e amendoim.
Naquela mesma semana recebi um e-mail de um agente recrutador do mystery.com, um inglês que morava no Brasil, me convidando para visitá-lo no seu apartamento. Fui sem pensar duas vezes. Cheguei e encontrei a porta aberta, com um bilhete me autorizando aentrar. Entrei e chamei. Nenhuma resposta.
O apartamento parecia ser enorme. Era mobiliado e decorado como se fosse uma mansão inglesa do século XIX, no melhor estilo vitoriano: móveis pesados, de jacarandá ou mogno, com detalhes de madrepérola; paredes cobertas de quadros retratando belas paisagens do campo inglês; numerosos candelabros, luminárias e enfeites que lembravam o Oriente na época do Império; e num canto da sala, sobre um móvel que devia ter mais de trezentos anos, várias peças do que me pareceu ser a legítima cerâmica chinesa da Dinastia Song.
Porém, não tive tempo de testar meus conhecimentos de História da Arte. Ouvi um grito assustador vindo do interior do apartamento e corri para ver o que tinha acontecido. Ao empurrar a porta do primeiro quarto, de onde eu supus ter vindo o grito, deparei-me com uma cena horripilante: um jovem loiro deitado na cama, tremendo, com as mãos no pescoço, na altura da garganta, de onde saía, num jorro contínuo, uma quantidade absurda de sangue. Ele me olhava e gorgolejava, como se dissesse “Cuidado”. Foi quando me virei e vi uma velha de camisola, segurando uma faca de açougueiro, vindo em minha direção.
Gritei, desesperado, e corri em direção à janela, esquecendo-me de que estávamos no décimo andar. Foi aí que ouvi as gargalhadas. O rapaz loiro estava de pé na cama, e a velha tinha se transformado num outro rapaz, talvez um pouco mais velho que o primeiro, e ambos riam, sem parar.
Não gostei da brincadeira, mas relevei. O rapaz loiro se chamava Nicolas, e o outro, seu namorado, era Alec, dois ingleses endinheirados que trabalhavam para o site mystery.com no Brasil.
Recebi deles um convite para integrar a equipe brasileira de escritores de mistério do mystery.com [que, além de site, era também editora e promovia uma série de festivais e eventos relacionados à literatura de enigma no mundo todo, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, onde as pessoas lêem muito mais do que na América Latina]. “Seu conto ‘Labaredas na Escuridão’ foi muito bem recebido pelos fãs”, disse-me Nicolas, “e por isso o site quer fazer um teste com você”.
Estávamos sentados num dos enormes sofás da sala de estar, cercados por obras de arte que deviam valer uma fortuna. Alec tinha ido preparar um café e se demorava na cozinha.
Nicolas me perguntava sobre a minha vida. Quis saber se eu fazia outra coisa além de escrever, e eu disse que não, que eu havia pedido demissão de um emprego que me mantinha em baixíssimo nível de idéias – como numa linha de montagem –, e que agora eu queria me dedicar em tempo integral à literatura. Nicolas gostou muito do que ouviu e me disse que, se eu passasse no teste, eles me pagariam três mil dólares por mês, para eu escrever um conto por semana.
“E qual é o teste?”, perguntei animado.
Quando Nicolas ia começar a me responder, Alec entrou na sala trazendo uma bandeja com três xícaras de café. Ao beber o primeiro gole, perguntei: “O que é isso?”. Os dois amigos sorriram um para o outro e Alec respondeu: “Um café expresso. O que mais poderia ser?”.
E eu olhava para o café, para aquela espuma dourada que se prendia na borda interna da xícara, consciente da pergunta idiota que eu acabara de fazer [pois eu sabia que se tratava de um café expresso], mas ao mesmo tempo enfeitiçado pela novidade daquele sabor e daquele aroma, que me evocavam recordações de vidas passadas [que eu não me lembrava ter vivido], além de me aguçarem a lucidez e a criatividade de uma forma inteiramente nova e inesperada. Nicolas interrompeu meus pensamentos dizendo que talvez o que eu queria saber era que tipo de café expresso era aquele. Eu balancei a cabeça em sinal de afirmação e sorvi, lentamente, mais um pouco da bebida, maravilhado com as sensações que ela me provocava. A resposta não podia ser mais clara: “Esse café é feito com os melhores grãos que existem no mundo, numa máquina que, na minha opinião, também é a melhor do mundo”, disse Nicolas.
Mas voltemos ao teste.
Terminado o café, Nicolas me explicou que, para ingressar na equipe de escritores do mystery.com, eu teria que transformar aquele meu conto “Labaredas na Escuridão” em um romance de 200 páginas [escrito em inglês], em um prazo de quatro meses. Eu poderia ficar no apartamento da frente, que também era deles, “e”, acrescentou Nicolas sorrindo, “você terá direito a quantos cafés quiser, pois o apartamento destinado a você está equipado com a mesma máquina que acaba de fazer esta maravilha aqui”.
Fiquei sem palavras.
Os dois jovens me encaravam com olhos cheios de mistério e ironia.
“O que me diz?”, perguntou Nicolas.
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