quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

HORA DERRADEIRA- FLÁVIO MARCUS DA SILVA (FOTO)






27 - Hora derradeira


Em uma crônica inspiradora, publicada em 2003, Padre Geraldo Gabriel de Bessa aborda um tema que a maioria das pessoas prefere evitar: a morte. Porém, suas palavras não nos conduzem a nada que normalmente a gente esperaria ler nos escritos de um pároco: vida eterna, salvação da alma, juízo final ou outras questões caras à doutrina católica. Seu texto aborda a morte a partir de uma perspectiva psicológica muito interessante. Começa mostrando como as pessoas sentem prazer em dar a notícia da morte de alguém em primeira mão: “É gozado ver a alegria nos olhos daqueles que gostam de antecipar a má notícia”. E isso não mudou de lá pra cá. A novidade é que, hoje, a rede social Twitter tem sido um canal interessante para a divulgação desse tipo de notícia, sobretudo das mortes repentinas de pessoas conhecidas na cidade, ou de gente famosa, em escala nacional:
“Acabou de morrer, em trágico acidente...”. Todos arregalam os olhos, surpresos, e clicam no link para ver se tem alguma foto interessante.
Logo depois de anunciada a morte, dependendo da importância do morto, reportagens especiais são elaboradas, homenagens são prestadas, inimigos se tornam amigos, falsos amigos continuam fingindo ser amigos e consolam a família enlutada, etc. Mesmo os pobres anônimos, quando morrem tragicamente, merecem uma foto e uma matéria nos jornais, talvez as únicas de toda a sua vida além-túmulo [na vida fora do túmulo, raramente um vivo pobre e anônimo tem esse privilégio: na maioria das vezes, é preciso morrer tragicamente ou cometer um crime para aparecer no jornal].
Ao que tudo indica, fotos e matérias desse tipo têm como objetivo atrair a atenção de leitores ávidos por desgraças alheias: notícias de acidentes e mortes muitas vezes aliviam suas angústias, reanimando-os para a vida.
Esse é um outro ponto interessante abordado pelo Padre Gabriel em sua crônica. Referindose aos velórios, ele afirma: “Parece que a gente vai lá para certificar que está vivo (...).
Ninguém quer ocupar o lugar do morto, ainda que ele seja famoso”.
Nem pensar!
Num velório ou numa matéria de jornal bem sangrenta está ali, mortinho da silva, alguém que eu não conheço, ou que, se conheço, pelo menos é OUTRA PESSOA, ou seja: NÃO SOU EU. Eu estou vivo. Ele está morto. Ainda não chegou a minha vez.
Numa passagem da novela “A morte de Ivan Ilitch” (1886), do escritor russo Leon Tolstoi, essa perspectiva também é adotada: “Além das elucubrações sobre possíveis transferências e mudanças de departamento, resultantes da morte de Ivan Ilitch, a simples idéia da morte de um companheiro tão próximo fazia surgir naqueles que ouviram a notícia aquele tipo de sentimento de alívio ao pensar que ‘foi ele quem morreu e não eu’”.
Em uma bela crônica de 1960, Rubem Braga incorpora um personagem que observa uma viúva na praia: “Se eu fosse casado, e morresse, talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar que, alguns dias depois, um homem – um estranho, que mal conheço de vista, do café – estaria olhando o corpo de minha mulher na praia. Mesmo que olhasse sem impertinência, antes de maneira discreta, como que distraído. Mas eu não morri; e eu sou o outro homem. (...). Eu estou vivo, e isso me dá uma grande superioridade sobre ele [o morto]”.
Aqui, Rubem Braga se aproxima muito das pessoas que vão a velórios (da crônica de Padre Gabriel), e dos companheiros de Ivan Ilitch (da novela de Tolstoi). Ele pensa no morto com um sentimento de superioridade, simplesmente por estar vivo.
Para a maioria das pessoas, morrer não é bom. Tolstoi e Rubem Braga descrevem o morrer como algo extremamente desagradável para os que assistem à morte. E para quem está morrendo, a sensação parece ser de derrota, a maior de todas: não tem mais jeito, é o fim.
Tolstoi escreve, em “A morte de Ivan Ilitch”: “O horrível, terrível ato de sua morte, ele via, estava sendo reduzido por aqueles que o rodeavam ao nível de um acidente fortuito, desagradável e um pouco indecente (mais ou menos como se comportam com alguém que entra em uma sala de visitas cheirando mal)”. Rubem Braga, por sua vez, observando a viúva na praia com o filho, escreve: “Não, a viúva não está de luto, a viúva está brilhando de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo o vento do mar, tão diferente daquele ar triste do quarto fechado do doente, em que viveu meses. Vendo seu homem se finar; vendo o decair de sua glória de homem fortão de cara vermelha e de seu império de homem da mulher e pai do filho, vendo-o fraco e lamentável, impertinente e lamurioso como um menino, às vezes até ridículo, às vezes até nojento...”.
É. Realmente, morrer não deve ser bom. Mas há quem morra de repente, sem sofrer, sem nem se dar conta do fato. O morrer, nesses casos, acontece numa fração de segundo – “morreu na hora”, como dizem os jornalistas –; e para quem morre assim, o que deve importar é o além-túmulo [se e é que isso importa].
Para concluir esta crônica funesta, eu pergunto a quem conseguiu chegar até aqui: Será que para quem morreu faz alguma diferença se morreu jovem ou velho, se deixou viúva, filhos, pais, amigos e patrimônio? E para quem ficou? Eu não queria estar no lugar do morto. Mas onde está o morto? Por um acaso eu sei onde ele está para eu não querer estar no lugardele? Aquilo ali é só um corpo! Se eu estivesse lá, ONDE eu realmente estaria? Será que existe de fato essa superioridade dos vivos sobre os mortos? Não seria o contrário?
Referências:
BESSA, Geraldo Gabriel de. Padre. Morte de pessoa famosa. In: Sinfonia de Vozes. Itaúna: São
Lucas, 2003, pp. 74-5.
BRAGA, Rubem. Viúva na praia. In: Ai de ti, Copacabana. Editora do Autor – Rio de Janeiro,
1960, p. 129.
TOLSTOI, Leon. A morte de Ivan Ilitch. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 7.

QUEM É MARCUS FLÁVIO DA SILVA



Nascido em Pará de Minas- MG em 1975. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e doutorado pela Universidade federal de Minas Gerais (2002) com estágio (Doutorado- sanduíche/CAPES) na Universidade de Lisboa- Portugal (2002). Atualmente é Vice- diretor da Faculdade de Pará de Minas- FAPAM-(MG) onde já exerceu os cargos de Coordenador do Curso de História, coordenador do NUPE- Núcleo de Pesquisa, e foi professor nos cursos de História e Administração. Atualmente leciona nos cursos de Direito e Pedagogia. É autor do livro SUBSISTENCIA E PODER: a política do abastecimento alimentar nas Minas Setecentistas (Editora UFMG -2008) e de artigos publicados em periódicos e livros de História. Um de seus trabalhos foi publicado no livro HISTÓRIA DE MINAS GERAIS- As Minas Setecentistas (Editora Autentica 2007) obra vencedora do PREMIO JABUTI
2008 na categoria Ciências Humanas. Atualmente exerce também a função de Pesquisador Institucional da Faculdade de Pará de Minas junto ao Ministério da Educação, sendo responsável pelo acompanhamento dos processos e renovação de reconhecimento dos cursos de graduação da IES. Em 2009 foi eleito para a Academia de Letras de Pará de Minas.
www.nwm.com.br/fms

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